Prólogo para a alma de um Bombeiro de Minas Gerais

PRÓLOGO PARA A ALMA DE UM BOMBEIRO

Uma missão súbita. Cenas metafóricas de filmes, mas, eu vivi a realidade. Muito provável que fosse uma madrugada fria, não me lembro. Pois muitos desses momentos que vivenciamos, noites e dias se confundem na grande imensidão do esforço sem trégua. Nossa vida passa, o amor nos esquece. De longe o brado, gritos de socorro ecoaram nas entranhas daquele alojamento frio. Minha alma já inquieta já pressentia algo estranho. Um gosto amargo fustigava minha garganta quando eu respondia ao chamado do comandante. Meu grito de QAP se expandia à distancia em um timbre estridente e gutural. Meu corpo trêmulo se sentia vago ao peso das botas pretas e a farda cinza. Meus dedos longos se arrastaram pelas paredes em busca de um interruptor, debalde foi minha ânsia implorando por claridade. Só escutei o barulho seco das teclas. Um relâmpago rasgou a fresta da janela. Desnudou minha sombra opaca em silueta e quebrou por um segundo a negritude da escuridão. Não demorou muito para que eu ouvisse o berro estrondoso de um travão. Minhas mãos tatearam na cabeceira do beliche, em busca da cobertura. Queria naquela hora minha boina vermelha, pois todas as vezes que a colocava na cabeça parece que meu sangue motivado corria em fluxo. Concomitantemente, a carga enérgica da vida me tangia para um prólogo de missões sinistras. Embora reconhecesse que naquela madrugada não era momento para ostentar vaidades nem reviver desejos. Não sei, mas eu queria partir assim. A tempestade corria lá fora e muitas almas em apuros chamavam por mim. Eu tentava achar o portão da guarda, mas uma força irresistível me prendia no relento daquele corredor deserto. Não via mais o comandante que me chamava nem meus companheiros de missão. Em outras ocasiões eu não me lembro de ter atendido uma ocorrência sozinho. Novamente um relâmpago adentra em laser. Naquele prefácio mínimo de luz ganhei a porta de saída. Debrucei em rastejo pela lama e os destroços e alcancei o saguão do transporte. A maior viatura me servia, pois a missão poderia ser das mais perigosas e difíceis. Liguei os motores. Saí em disparada para a última curva onde debruçava o resgate. Muito estranho, pois não conseguia ver os potentes faróis cruzar as águas nem muito menos ouvia o barulho do motor. Abri a porta da viatura e mergulhei na lama e pela primeira vez senti que aquele corpo não mais me pertencia. Senti meu espírito submerso em um mundo escuro. Minha mãe! Minha namorada! Será onde elas estão? Apalpei meu corpo degenerado e senti a leveza da inexistência material. O líquido escarlate que outrora corria em minhas veias em delicadas oscilações, agora, avança com rebeldia ignorando qualquer limite; se antes sua tenacidade fluía em círculos para me assegurar o sopro da vida, agora, sua tolerância fugaz arrasta-me para o universo do medo e do desconhecido. Minha farda fica imunda encharcada pelo sangue, meus pulsos e meu coração sofregam latentes. Há uma falsa impressão de que essa missão terminou. Dessa vez sem o almejado resgate das vitimas que me clamaram. Ouço o derradeiro grito. Parece ser de alguém que eu conheço. É minha guarnição! Meus colegas de farda. Vieram resgatar quem sempre regatou alguém. Minha alma agora sem corpo desce à piedade dos mais tristes escombros. Sente orgulhosa, embora triste, o frescor aconchegante dos ventos nas alturas. Nadando contra a corrente das cheias e zombando dos destroços deixados pela tempestade. Despido de minhas vestes materiais, ainda, presto auxilio a um pelotão. Homens de cinza, que num recanto baldio da cidade combatem as últimas chamas. Acredito que essa foi só mais uma missão. A alma do combatente para sempre alimenta a substância da luta, enquanto seu corpo e sua lembrança hibernam em eterno repouso. Deixo de lembrança os meus apetrechos: cordas de perlon, meu cinto, meu freio em oito e meu mosquetão. Para o velho Cabo, deixo meu manual de nós e amarrações. Cuidado com escaladas! Mas agora tenho um convite para a última festa no parque das flores. Prometo que não vou beber do mesmo tanto que já bebi em outras festas com vocês. Aliás, essa festa não é para isso. É uma festa de despedida. Quem vai para onde vou, aqui não regressa mais. Vou resgatar almas em apuros em outras dimensões. Daqui de longe vejo meu corpo. Agora numa farda nova. Quando vejo minha boina vermelha minha alma ganha peso e resistência como se novamente algo me projetasse para a vida. Mas não há mais força. Lá está meu comandante e a guarda em forma. Preparar! Apontar! Fogo!! Se o Corpo de Bombeiros Militar de Minas Gerais não se esquecer de mim, serei o nome de uma rua, praça ou batalhão. Adeus!!!