*MEU PAI*
Meu pai tem medo de palhaço. Quando eu era pequena uma vez perguntei o motivo. Ele apenas me respondeu: quando você crescer eu conto. É a cara dele fazer isso.
– Quando você crescer pode fumar.
– Quando você crescer pode chegar tarde.
– Quando você crescer...
O problema é que eu nunca cresci, aos olhos dele. Continuo aquela menina mimada que chorava a noite inteira enquanto ele cantava todas as músicas que sabia tocar no violão. Uma vez chorei tanto que ele perdeu a paciência, me colocou tarde da noite numa banheira de água morna pra ver se o sono chegava. O dele veio, o meu, passou longe.
Meu pai é esse tipo de cara, paciente, amigo, que toca violão pra gente dormir. E quando perde a paciência fica chato e emburrado.
Não sei se ele sabe, mas quando a gente ia tirar uma soneca depois do almoço, ele de um lado e eu do outro, eu nem sempre fechava os olhos. Ficava lá, só olhando pra ele. E me bastava. Ele dormia e eu olhava, imaginando o que ele estava sonhando. Uma vez tapei o nariz dele e ele ficou sem ar. Eu morri de rir sozinha quando ele acordou assustado.
Minha teimosia com ele começou logo cedo. Ele dizia: não coloca o dedo na tomada que faz dodói. Eu ia lá e tacava os dois dedos. Me ferrei.
– Não mexe na televisão, dizia ele. Tanto fiz que a tal televisão caiu em cima de mim.
Mas em todas essas estripulias, uma certeza eu sempre tive: acontecesse o que acontecesse ele ia estar lá pra me ajudar.
Era ele quem tirava meus espinhos do pé, ele que conseguia me convencer a tirar o dente de leite já mole, ele que pacientemente me explicava os mistérios das estrelas e da lua.
Meu pai me ensinou a andar de bicicleta. Mais que isso, confiei nele para tirar as rodinhas de apoio. E tem sido assim desde então: ele me ensina, eu caio; ele me apoia, eu levanto; e ele me deixa tomar rumo na vida. Ou não, como diria um dos poetas dele, Caetano, porque rumo é uma coisa que até hoje eu não sei direito pra onde é.
Quando eu cortei com minhas próprias mãos meus lindos cabelos longos e substitui por um ninho de pomba bêbada, foi ele que pegou a tesoura e disse que ia dar um jeito.
Quando eu menstruei aos 11 anos e gritei no banheiro, foi ele que me encontrou com cara de apavorada e ficou sem saber o que fazer e me disse para ter calma.
Ele me ensinou a dançar. Ensinou que mulher tem que ser mulherzinha, mesmo de vez em quando.
Meu pai gosta de vinho. Aprendi com ele.
Meu pai gosta de ler e escrever. Também aprendi com ele.
Tantas e tantas horas que ele ficava lá lendo para mim os livros mais fantásticos que eu já tinha visto na vida. Sempre com guerras intergalácticas, monstros esverdeados e mil e uma aventuras. Nada de livro bobinho, isso era pra criança, não pra mim, que me achava adulta desde os três anos de idade.
Meu pai tocava em uma banda. Entrou para o teatro, fazia o jornalzinho da firma. Meu pai tem cabelo comprido, gosta de música, de moto, de acampar.
Sempre achei ele um cara bonitão. Filho de polonês, o velho é loiro, do olho azul. Agora tá carecão, mas insiste em manter um rabinho de cavalo stile.
Nunca pensei no meu velho, velho. Engraçado isso. Pra mim ele continua com os mesmos 20 e poucos anos de quando eu o conheci.
Claro que o cara gente boa também pode ser um pé no saco. Mil regras de horários, mil regras disso e daquilo. Faz parte.
Meu pai me enche o saco quando não olha para o próprio umbigo. Sei que é o jeito dele de me amar, mas porra pai, vai me chamar de gorda de novo? Vai dizer que to velha, de novo?
– Minha filha, esse teu cabelo...não sei não.
Ele é assim. Na lata. Mas, hoje em dia, mando a merda e fica tudo bem.
Nem sempre foi assim, fácil. Morria de medo de decepcionar o cara. Morria de medo de não estar à altura das expectativas. E quantas brigas a gente teve? Mas é assim, né? Os iguais acabam se estranhando. Duas cabeças duras, dois turrões, dois sabe-tudo, não pode dar certo sempre.
Mas na maior parte do tempo meu pai me carrega no colo.
Eu fico me perguntando se algum dia eu fui, sou, ou serei, aquilo que meu pai espera de mim. Ele tem uma cadernetinha antiga, do tempo do homem na lua, e nela meu nome está escrito dezenas de vezes. Dez anos antes de eu nascer ele já me imaginava.
E hoje tô eu aqui aos 42 anos, escritora, jornalista, blogueira, com piercing, cabelo rosa, roupa esquisita e cheia de tatuagens. Desculpa pai, mas é o meu jeito. Lá no fundo você sabe que sou legal.
E porra pai, tomara que um dia eu chegue aos pés do que você é e faça metade do que você fez por mim. Obrigada. Te amo. Simples assim.
Ah, lembra que a gente cantava no violão uma música do Fábio Junior?
Encerro o texto repetindo aquilo que a música diz:
Pai
Eu não faço questão de ser tudo
Só não quero e não vou ficar mudo
Pra falar de amor pra você
Pai
Senta aqui que o jantar tá mesa
Fala um pouco tua voz tá tão presa
Nos ensina esse jogo da vida
Onde a vida só paga pra ver
Ah, e me explica, por favor, por que você tem medo de palhaço?
Andrea Carvalho (filha de José Jomar, em agosto de 2013)