MARCIANA

Não se trata de uma habitante de Marte, mas se fosse, os marcianos teriam muito orgulho dela. Marciana Gabriela Monteiro, eis o seu pomposo nome. Veio morar com a nossa avó Augusta Maciel Vidigal, sua madrinha, no início da década de 40. Procedente da zona rural, tinha muito que aprender na Vila de Calambau , onde morava a nossa avó. E como aprendeu! Desde pequenos, nós, os netos da Dona Augusta, filhos da dona Cici e do Sr. José Carneiro, aprendemos a admirar esta criatura, que gostava muito de todos nós. Adorava, também, todos os filhos e netos de nossa avó. Quando viemos para a Vila, frequentar a escola, Marciana, supervisionada pela nossa avó, cuidava muito bem de nós, como se fôssemos seus filhos. Cuidava da nossa roupa, da nossa alimentação, e vigiava o nosso comportamento. Para combater verminoses e anemia, Marciana nos dava um santo remédio: o “leite ferrado” . Colocava uma ferradura de burro (tinha que ser de burro e não de cavalo, segundo ela) no fogo do fogão de lenha, até ficar em brasa. Em seguida, a ferradura era mergulhada em uma panela com leite, acrescentando-se folhas de hortelã e raspas de rapadura. Era uma delícia! Esse remédio caseiro era muito usado nas zonas rurais da região. O quintal da casa de nossa avó era uma verdadeira chácara. Marciana regava a horta e os jardins da casa, sempre cantando, principalmente cânticos religiosos. A casa situava-se onde hoje é a Escola Padre Vicente de Carvalho. O quintal era muito grande. Havia um extenso pomar com inúmeras árvores frutíferas e uma grande horta. Marciana cuidava de tudo e, ainda, sobrava-lhe tempo para cuidar da cozinha, limpeza da casa e lavagem das roupas. Muito católica, era Filha de Maria, uma congregação de moças dirigidas pelo pároco local. No ano de 1955, foi realizado o Congresso Eucarístico Internacional, no Rio de Janeiro. Em todas as paróquias brasileiras era rezada uma oração para o bom êxito do Congresso. Como a Marciana ainda não sabia ler, pedia que a gente lesse para ela até que a oração fosse decorada. Assim, ela poderia fazer a “leitura” na Igreja, junto com as outras moças. Depois de muitos anos é que ela foi alfabetizada pela nossa tia Ruth, com quem morou em Belo Horizonte. Chegou até a escrever algumas cartas para pessoas amigas. A nossa avó era famosa pelas suas receitas culinárias. Era exímia cozinheira e doceira. Um dos seus maiores destaques era o famoso biscoito de polvilho. Marciana foi a única pessoa que conseguia fazer o famoso biscoito do jeito que a vovó fazia. Ninguém da família conseguiu desvendar o segredo da receita, somente a Marciana. Ela gostava, também, de fazer broas de fubá, brevidades, e um excelente sabão de óleo de mamona. E o seu torresmo, a canjiquinha seca, o seu bife suculento, e muitas outras iguarias que, só de pensar dá água na boca! Marciana era uma fiel escudeira de nossa avó. Sempre a acompanhava à Igreja para as cerimônias religiosas, carregando um genuflexório (pequeno móvel de madeira, no qual os fiéis se ajoelhavam na Igreja). Ainda me lembro, quando chegávamos da roça, da voz da Marciana nos anunciando: Ô madrinha, o pessoal da Cici está chegando! Depois da morte de nossa avó, Marciana foi morar com os tios Pedro e Ruth em Belo Horizonte. Quando íamos visitá-los, ela dispensava aos nossos filhos o mesmo carinho que tinha conosco, quando crianças. O mesmo acontecia com todos os da família que iam lá. Com a morte da tia Ruth, ela foi morar em Nova Era onde também residia uma sua irmã. Quando mais idosa, passou a residir em um asilo, também em Nova Era, onde era muito bem tratada. O Padre Pedro lhe deu toda a assistência, também, no período em que ela morou em Nova Era. Pouco antes de falecer, ela veio a Calambau, onde visitou os nossos familiares e seus amigos. Assim que chegou, ficou na varanda de nossa casa olhando as montanhas do velho Calambau, e disse-me:- Quanta saudade tenho dessas lindas montanhas! Não só em Calambau, mas também por todo o interior do Brasil, existiram e existem muitas Marcianas, que, por um motivo qualquer, foram morar com outras famílias, sendo por estas absorvidas como pessoas da família, criando um grande vínculo de amizade entre as mesmas. A relação das donas de casa e suas auxiliares, no tempo de nossas avós era de compromisso, fidelidade, amizade e lealdade. Aqui em Calambau tivemos vários exemplos dessa relação: - Tereza, que morou muito tempo com os compadres Zé Fernandes e Dona Ilidia. - Mina, que conviveu por longos anos com a família do Cacau e Dona Pergentina . - Carolina, com a família do João de Braz. - Ana, com a família de Zizinho de Olívio e a Dona Rita - Inácia, com a família de Juca Braz e Dona Ida - Geralda, que ainda mora com a família de Ladinho de Olívio e Dona Geralda . Tais mulheres são, apenas, alguns exemplos dos muitos existentes em nossa comunidade. Como a Marciana, todas elas pertenciam à Congregação das Filhas de Maria. Íam para a Igreja com os seus vestidos brancos e a fita azul no pescoço, ostentando a medalha de Nossa Senhora. Elas visitavam, com o Padre local, outras congregações das paróquias vizinhas e, recebiam, também, a visita das mesmas. Conta-se que certa vez, as Filhas de Maria, de Piranga, vieram visitar as de Calambau. O Padre Grossi , vigário local, distribuiu as moças para as casas das famílias que se prontificaram a recebê-las. Tão logo elas chegaram, as famílias foram recebê-las levando-as para as suas casas. O Antônio de Paula, viúvo, que morava com o seu filho João, estava na janela de sua casa quando viu o movimento. Mais que depressa, ele chamou o seu filho e disse-lhe:-Corre lá João. O padre está distribuíndo moças e nós aqui feito bobos... Conta-se, também, que quando o João lá chegou, já havia terminada a distribuição... A Marciana, com certeza, está fazendo parte do rol das pessoas que estão no céu. E se lá, alguém manifestar o desejo de comer uma boa comidinha da terra, tenho certeza de que a Marciana irá se oferecer para fazê-la. E todos se lembrarão dos bons momentos vividos aqui.

Calambau/setembro/2013

Murilo Vidigal Carneiro

murilo de calambau
Enviado por murilo de calambau em 30/10/2013
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