Uma narrativa triste

Após meses de resistência, finalmente havia se rendido à tal colostomia, uma cirurgia em que parte do intestino é exteriorizado no abdômen. Assumindo o posto de acompanhante, ao seu lado perambulei durante horas pelos corredores a espera de atendimento.

Ausentei-me por alguns instantes e, ao retornar, um médico havia conversado com ela, explicando-lhe que após o processo cirúrgico ela teria uma vida “normal”. Falava-me tão empolgada, tão crente nas palavras daquele profissional, que até eu curti um pouco essa ilusão.

Levando comigo suas roupas e outros pertences, voltei pra casa. Ao chegar, deparei-me com um grupo considerável de vizinhos rezando por ela, pela sua recuperação. Eles vinham acompanhando sua difícil trajetória e queriam ajudá-la com orações. Isso me fez pior. Percebia ali a gravidade da coisa.

Naquela noite eu não dormi. Liguei para o hospital e me informaram que ela ainda estava na sala de cirurgia. Mais um tempo e novamente tentei, foi quando a voz informante me derrubou dizendo que a cirurgia havia terminado, mas era “delicado o caso da paciente”.

No dia seguinte ela não podia receber visitas. Minha prima, que trabalhava naquele hospital, chegou a vê-la, mas não ficou muito animada. A situação dela era muito complicada. O dia inteiro seu organismo expulsava o que por algum tempo ficou acumulado.

No terceiro dia após a operação, para nosso alívio poderíamos vê-la. Estava no trabalho, aguardando a hora da visita, e resolvi ligar pra minha irmã, pra saber se o pessoal já havia saído, pois nos encontraríamos dali a alguns instantes. Muito emocionada, ela mal conseguia falar, dizendo que havia ligado uma assistente social, pedindo que alguém da família fosse até o hospital, portando os documentos pessoais da minha mãe. Não entendíamos nada, mas isso nos fazia esperar o pior.

Uma certeza me veio e de repente eu me vi diante de um chão que se abria. O sentido das coisas se perdeu e, com o telefone na mão, me agachei escorada numa parede, numa sensação de perda que palavras não explicam. Fui acudida por um colega que me pôs num táxi para que eu chegasse até o hospital.

Encontrei meus irmãos, meu pai, alguns vizinhos e parentes, todos desesperados com o acontecido. Era tudo muito confuso na minha cabeça. Muita gente, pouca informação e eu não sabia de nada. A triste notícia me foi dada: após várias tentativas para reanimá-la na sala de ressuscitação, foi declarado o óbito. Fiquei perdida, perplexa, sem acreditar no que estava acontecendo. Era como se com a minha mãe aquilo nunca pudesse acontecer. Parecia um pesadelo o que eu vivia. Eu conversei com ela e não falei do meu amor. Acreditei que fosse voltar pra casa.

Enquanto um dos meus irmãos ficou tratando da parte burocrática, com os demais fui pra casa. À noite, a chegada da funerária me fez experimentar a dor mais sofrida que um ser humano pode ter. Foi muito difícil velar aquele corpo. Era a minha mãe que repousava ali, sem vida, sem poder me ouvir, nem me tocar.

Uma sexta-feira que marcaria a minha história de vida, fazendo-me carregar por todos os dias uma saudade sem tamanho. Naquele nove de abril de mil novecentos e noventa e nove, por volta do meio-dia, despedia-se da vida a minha mãe Maria da Conceição, após infindas provações a que foi submetida. Há exatos catorze anos, eu perdia a pessoa mais importante da minha vida, sem força alguma para lutar contra isso.

Não houve tempo para despedidas, nem para as declarações de amor que ficaram guardadas. Mas aos poucos a dor foi se transformando em saudade. Hoje a minha família (meu pai e meus oito irmãos), permanece unida, em reuniões frequentes, em que celebramos a vida. Temos esse compromisso com ela.

Maria Celça
Enviado por Maria Celça em 08/04/2013
Reeditado em 08/04/2013
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