SALETE- A GUERREIRA QUE FOI VENCIDA

Foi em 1991 que conheci Olympia Salete, no interior de São Paulo, mais precisamente, no dia 23 de fevereiro, quando do lançamento do seu quinto livro “Memórias: Artes Plásticas em Marília”.

Narrei, sobre ela, alguns detalhes no meu livro de crônicas “Flashes Urbanos” e não irei repeti-los aqui. Porém, quando estreitamos nosso conhecimento em virtude da afinidade com a literatura, passei a admirá-la pela sua inteligência, pela sua arte de redigir, pela sua criatividade, simplicidade, competência, amor aos animais , pela garra de viver sua vida sem preconceitos, entre outros atributos. Conhecida na cidade também pela sua ousadia, coragem e classificada por alguns como revoltada, porque era destemida e franca em dar seu parecer sobre as questões gerais, principalmente as sociais, políticas e literárias.

Escritora e tradutora, sua profissão era exercida mais através de trabalhos que digitava para universitários, quando, naquela época, não eram muitas as pessoas que tinham acesso ao computador, ou que sabiam digitar ou ter tempo suficiente para tal empreendimento.

Além de digitar, Salete tinha profundo conhecimento da língua portuguesa/ brasileira e fazia as correções, que fossem necessárias, na redação dos universitários.

Era uma das representantes da cultura mariliense e, quando fundamos um grupo intitulado Grupo Prisma de Literatura, encabeçado por Raquel Vanalli, bibliotecária, Salete foi entrevistada pelo nosso jornal , intitulado “Etcétera”.Tomo a liberdade de repassar aquela entrevista:

“Grupo Prisma (GP)- Como você começou a escrever ? E por quê?

Salete- Eu creio que comecei a escrever talvez por herança. Minha mãe escrevia.Eu gostava do que ela escrevia. Queria imitar. Ela sempre brincava comigo dizendo que eu chorava rindo.Aprendi a ler sozinha nas revistas religiosas de minha avó. Tinha o hábito de fazer minha própria letra para as músicas que eu gostava. Não tenho registro dessas coisas, apenas sabia de cor. Fui uma criança e uma adolescente questionadora de tudo o que os adultos diziam, inclusive da religião. Pela própria limitação física por não poder sair correndo por aí como as outras crianças, me acostumei a observar. E refletia muito sobre minhas observações. O impulso maior para que começasse a escrever foi justamente a reflexão e o protesto contra as injustiças contra mim e contra os outros. Esse impulso político-contestador foi despertado quando, pela primeira vez, tive que lutar pelos meus direitos. Era criança ainda. Estudava no colégio das freiras. Íamos desfilar no dia 7 de setembro. Eu estava muito feliz, mas fui barrada, pois, segundo a freira, meu problema físico fazia com que eu quebrasse a harmonia do conjunto. Briguei e desfilei. Quebrei a harmonia do conjunto. E continuei, vida afora, brigando e quebrando a harmonia do conjunto.

GP- Qual é o seu processo de criação? Você segue alguma metodologia?

Salete- Sigo apenas minha inspiração. Gosto da espontaneidade. O academicismo não me agrada. Houve épocas que eu dormia com um gravador à cabeceira para poder registrar as ideias que me vinham durante a noite. Isso a nível de poesia.Quando se trata de prosa, eu tenho a ideia e monto o que eu chamo de “esqueleto” do livro. Depois vou botando as carnes. Não tenho didática. Cada obra é como um filho, diferente do outro.Quanto aos personagens, geralmente são uma mistura de diversas pessoas.Eu ouço ou assisto um fato interessante e o atribuo a um personagem. Em “Nem tudo ou Nada”, por exemplo, um personagem vive uma experiência muito rica de minha bisavó. O que eu escrevo é vida, não há nada de irreal, de apenas ficção.

GP- Você encara a literatura como profissão?

Salete- Não. Não vivo disso nem poderia .Nunca pretendi viver de literatura. Realmente, o que tenho vontade é de fazer uma enorme edição de um livro meu e distribuir. Quero chegar nas pessoas. No caso do livro “Os Bichos”, fui a uma banca ver qual revista mais barata e foi o preço que coloquei no livro. As pessoas não podem dizer que não leram porque não podiam comprar. Não me sinto escritora. É muito pomposo para mim; mas assim me chamam e acabei aceitando, até com muita honra.Prefiro ser chamada de poeta.

GP – A Literatura, num contexto amplo, vem cumprindo o seu papel?

Salete- Sabe, eu não tenho lido nada ultimamente, portanto sinto-me limitada para responder. Mas acho que a literatura não está cumprindo o seu papel porque está “proibida” para muitos que têm sede de leitura. O seu papel de conscientização é o principal. Penso que qualquer leitura é válida e sou absolutamente contra a censura que, na arte, é a coisa mais ridícula e absurda. Se conscientizar é o papel da literatura e ela não está chegando às pessoas, então ela não está cumprindo seu papel. Está impedida, por vários fatores, inclusive o econômico.

GP – Restringindo-nos mais a Marília, qual é o papel do livro?

Salete- Há uma impossibilidade de se chegar ao livro. Não há formação para a leitura, que é mais ou menos como o “caviar”, ninguém gosta porque não conhece o gosto. As pessoas se acostumaram ao “leite ralo”. As pessoas não podem conhecer o que não é veiculado. Sendo assim, só compram o que conhecem, presumem maçante o que não conhecem.

GP- O que você pensa do mercado editorial?

Salete- Penso que é o grande castrador da literatura. Em Marília, é lamentável. Não se reconhece a “prata da casa”. Não falo de mim de mim pois sou privilegiada, prestigiaram-me muito. Mais sei de muitos talentos sufocados. A imprensa, em geral, só dá apoio àquilo que interessa a ela. O “Nem Tudo é Nada” só conseguiu todo aquele espaço porque o editor teve um pouco de sensibilidade e teve “faro” para um assunto polêmico. A nível editorial, não há sensibilidade com ninguém. Não acho que as editoras devam ser entidades beneficentes, publicando tudo, pois há muita “porcaria”, mas falta sensibilidade para os trabalhos de valor. O escritor fica sem incentivo. A mídia vem dando lugar a uma literatura de escândalos. Mas tudo isso combina: o Brasil é a lata de lixo do mundo e Marília é a lata de lixo do Brasil.

OBRA:

“O Céu... O Mundo... e Eu” – poesias, 1957

“Meus Bichos- Histórias de vida- relatos, 1983”

“O Antigo Amor de Hoje”- poemas, 1983

“Memória: Artes Plásticas, Dança e Música em Marília (1960-1968)”- pesquisa, 1989

“Memória: Artes Plásticas, em Marília (1960-1968)”-pesquisa, 1989

“Psicologia do Conflito”(Tradução)

“O Adolescente e seu Mundo”(Tradução) Pernambuco

“Nem Tudo é Nada”- romance, 1991

Salete era assim: nua e crua, mas extremamente solidária. Parece paradoxal dizer isso, porém quem não tem alguma coisa de paradoxal na vida? Dizia-se agnóstica, não sei se teve algum trauma quando do seu período de estudante em colégio de freiras, entretanto, algumas de suas atitudes eram, impressionantemente, humanitárias, como recolher animais de rua, principalmente cães doentes, abandonados, e que ela os “adotava”, apesar de enfrentar dificuldades para cuidar deles. Fundou a “Comunidade dos Bichos” que funcionou, por algum tempo, no quintal de sua casa, situada à Rua Pernambuco e que foi desativada depois, por uma série de fatores. Um dos cães era seu companheiro de todas as horas, e dormia no seu quarto. Constantemente, acionava veterinário, pois os animais precisavam da assistência desse profissional.

Teve vida amorosa, mas não se casou e nem teve filhos. Adotou uma menina a quem ela muito se afeiçoou e que lhe trouxe muitas preocupações. Testemunhei ocasiões em que Salete se desesperava com a ausência da filha adotiva que fugia e não lhe dava notícias.

Diante da problemática da vida, Salete tinha períodos de crise existencial e procurava se isolar, não ouvia rádio, nem assistia a programas de TV e até mesmo não atendia telefonemas. Seu círculo de amizades íntimas era muito restrito e, mesmo assim, naquelas situações, ela evitava até quem procurava ajudá-la. Mas esta fase passava, então, ela escrevia seus textos, demonstrando sua índole questionadora e cidadã ,os quais sempre eram publicados nos jornais da cidade.

Assim, viveu Salete, continuando sua vida abraçada ao computador que , nos momentos de euforia, dizia ser seu “marido”. Guardo ainda cartões destinados a várias ocasiões festivas, como Natal, Ano Novo, entre outras, assim como belas reproduções de telas famosas, e blocos de carta personalizados, tudo confeccionado por ela, no computador, e que constituía ainda uma novidade, naquela época.

Devo muito a essa amiga, por ter me incentivado a publicar meus textos em livro e feito a correção gramatical em vários deles. Através dela, conheci o site “Recanto das Letras”, no qual ela fazia publicações e que passei também a divulgar meus escritos.

Passaram-se os anos. Voltei para a Bahia e, algumas vezes, fui a Marília, a passeio, tendo visitado Salete, por duas vezes. Ela já não morava mais na Rua Pernambuco e sim, na Nova Marília. Em conversação, me disse, algumas vezes, que sentia muitas dores, possivelmente, causadas pela sequela da paralisia infantil . Tive a impressão de que ela estava “desencantada” com a vida. Queixava-se de dificuldades financeiras e nem mesmo contava com serviços de uma doméstica. Tentei argumentar que, apesar de tudo, a vida valia a pena. Entretanto, percebi que meu propósito não atingiu o objetivo.

A internet permitiu-nos continuar nossa correspondência, já com minha residência na Bahia, pois os telefonemas nos custavam um ônus mais alto. Trocamos vários e-mails e, num deles, ela me disse que estava organizando documentos para deixar sua casa para a filha adotiva, a fim de deixar a moça amparada, quando ela falecesse. Achei normal seu procedimento, pois é isso que, normalmente, os pais fazem.

Certa noite, ao fazer publicações no “Recanto...”, fiquei pasma quando lia os comentários postados por pessoas e, num deles, alguém se despedindo de Salete, falando que ela, a partir daquela data, faria falta no site. Pensei no pior e, só a muito custo, consegui saber o que acontecera.

Felizmente, eu conservara salvo todos os e-mails trocados por nós e os imprimi. Busquei contatos com amigos de Marília. Era verdade. Salete, a guerreira fora derrotada pela morte. Ela não esperara ser chamada pelo Alto. Ela se fora sem ser chamada. Ela fora derrotada pelo desespero e, num ato cruel, escolheu uma forma tão triste de partir.

Que descanse em paz. Agora, anos já passados, releio um poema de despedida que escrevi para ela, e bate uma saudade! Obrigada, amiga, pelo tanto que me ajudou.

nadir andrade
Enviado por nadir andrade em 03/04/2013
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