O CONTO CEARENSE DE CAIO PORFÍRIO CARNEIRO
O CONTISTA
Caio Porfírio de Castro Carneiro, cearense de Fortaleza, contista, novelista e romancista, no convés da fragata desde 1928, em sua longa jornada literária foi laureado várias vezes, incluindo o Prêmio Jabuti e o Pen Clube de São Paulo. Seus contos estão contidos em duas dezenas de antologias e traduzidos para várias línguas, o inglês, inclusive. O romance Sal da Terra foi traduzido para o italiano, árabe e francês, sendo depois adaptado para o cinema. Porfírio também escreveu literatura juvenil, poesia, reminiscências, perfis e memórias. Enfim, um escritor que vive essencialmente da literatura, sendo essa a sua grande paixão.
O CONTO
NÃO DÁ...
– Quero isto pronto ainda hoje.
– Hoje?
– Hoje.
Olhou o sol declinado e descobriu, aflito, que não conseguiria cumprir a tarefa antes do cair da noite. Mas baixou a cabeça e entregou-se, com a máxima rapidez, a ladrilhar, o suor pingando do queixo, das axilas. Na pressa e no nervosismo quebrou alguns ladrilhos.– Meu Deus.
O sol descia e o ladrilhado avançava pouco. A vista turvou. Sentou-se no chão, abanou-se com o velho chapéu. Fome medonha. Sede medonha. Os passos aproximaram-se:
– E então?
Olhou para ele, súplice:
– Não dá...
Primeiro o pigarro, depois a decisão aborrecida:
– Tudo bem. Chamo outro para o serviço. Pode ir. Venha amanhã receber as horas de serviço.
Ainda quis argumentar, o alpendre era grande. Apenas levantou-se, pôs o chapéu na cabeça e rumou para casa. A primeira pergunta, logo à entrada, os olhos dela esperançosos:
– Arranjou serviço?
A sede confundia-se com a fome. Olhou além dela e viu o monte de ladrilhos e o vasto alpendre.
– Não deu...
Sentou-se à mesa, mãos cruzadas ao queixo, à espera de alguma coisa que ela lhe pudesse trazer para comer.
Ele sempre se sentava na mesma cadeira de encosto alto e se balançava, olhando o tempo através da janela. Ele não mudava de roupa, o mesmo terno amarfanhado e sujo. Ele não calçava sapatos, meias furadas e chinelos, embora engravatado. Ele nunca sorria quando contava os cúmulos-nimbos que corriam no céu. Ele não cortava as unhas. Ele só se levantava para fazer suas necessidades. Ele dormia na velha cama, vestido como estava, mãos cruzadas ao peito, como morto ou como se rezasse. Ele só tomava a sopa chupando muito o caldo da colher, numa sonoridade de doer nos ouvidos e nos ossos. Ele chamava a criadinha, balançava-se na cadeira, e ordenava que ela se despisse. Ele a mandava embora em seguida com um gesto de mão e tédio. Ele pedia o jornal, qualquer jornal, para uma corrida ligeira pelos títulos com os óculos na ponta do nariz e jogava-o depois para o lado. Ele não se escanhoava quando fazia a barba, sentado na cadeira e a criadinha com um espelho na mão. Ele ficava com o rosto pontilhado de espuma. Ele não tomava o remédio que o médico receitara. Ele não cortava os cabelos. Ele roncava, cabeça bambeada, a saliva pingando da boca, quando o tempo ia mal e não se podia abrir a janela. Ele rezava e dizia palavrões. Ele recitava versos e os repetia até ficar rouco. Ele tossia e escarrava no chão. Ele soltava gazes, em seqüências sonoras que alcançavam a vizinhança. Ele resmungava e não dizia palavra. Ele cantarolava surdamente sempre a mesma canção. Ele me olhava com olhar neutro. Ele tossia a noite toda, sujava-se nas calças e não permitia que tocassem nele. Ele infernizava a minha vida e a vida da criadinha. Ele era o nosso pesadelo. Ele ficou assim depois que ela se foi, entre círios e flores. Ele então foi despachado para a companhia dela, depois que trocamos, eu e a criadinha, um olhar de cumplicidade. Ele continuou presente com a sua ausência. Ele me assusta quando olho para a criadinha. Ele a assusta quando ela olha para mim. Ele aumentou enormemente a carga de nosso pesadelo. Ele nos deixou sem remissão.