Anjo Engraxate

Dia destes, descendo em direção à cidade, papeando com a colega de banco do ônibus, a qual nunca vira antes, interrompi bruscamente a conversa, já no centro, rua São Paulo entre Caetés e Afonso Pena, lá de dentro avistei um cara de camisa marron, assentado numa caixa, de costas para a rua, dando um lustro no sapato de um freguês de cara tapada pelo jornal. O que? Ela escutou mas estava falando pra mim mesmo. Está me parecendo o Maluco. Será? Não pode! Um figuraça. Vou cair aqui mesmo! Dei sinal e tchau. Desci logo adiante. Com licença amigo; final dos anos 60, neste trecho, havia uma meia dúzia de engraxates. Aos sábados, antes do namoro, o pessoal marcava ponto aqui para assegurar o brilho dos sapatos. O serviço era tão perfeito que, por eles, dava-se até para pentear os cabelos - e olha que tínhamos cabelos. Por acaso você é contemporâneo? O cara esboçou um sorriso. Você é o Maluco? José Nicolau Teodoro às suas ordens, respondeu. Parou o serviço e disparou a falar: os engraxates éramos eu, Antônio Venceslau, Nenzinho (Funeral) -, irmão do Fernando (Boca Preta), Marcílio de Almeida, Carlão e Francisco (Chico Preto). Relembrou-me o nome de alguns fregueses, relatou os do andar de cima, os poucos que ainda lutam e por aí foi. Das amizades feitas naquele ponto, de onde, depois dos sapatos lustrados, todos saiam ao encontro das namoradas por bairros diversos. Falei do lourinho Valmir que namorava no mesmo bairro que eu – Alto dos Caiçaras. Do Laerte, filho do Cristiano – Renascença, onde nasci – também namorava lá. Da volta do namoro,que naquele tempo tinha dias e horas certos: domingos, quintas-feiras e aos sábados – das 19:30 as 22:30 no máximo. Religiosamente encontrávamos no Quibe Lanches à rua Espírito Santo, entre av. Amazonas e rua dos Caetés, para um chopinho e deliciosos quibes  Cada qual tinha seu garçon preferido. O meu era o Jurandir. Tudo isso era feito de olho no relógio, para não perder o último ônibus que saia do centro, sentido bairros impreterivelmente à zero hora. Foi um encontro tão inesquecível, que esqueci a verdadeira necessidade que me fizera estar ali na cidade. Maluco, ou Baiano, como era conhecido me pôs em dia com toda a sua estória. Casou com a Soninha, então sua namorada, tem dois filhos – Cristofferson e Izabela, filha maravilhosa que lhe dá gosto por ser muito aplicada nos estudos, etc. e tal. De sobra teceu comentários sobre uma figura memorável da época, que era a Lambreta – andarilha de Belô, atleticana doente, não perdia um só jogo do Galo. Andava sempre de tênis de lona azul, sola branca, meia soquete, saia justa e blusa e uma ripa de caixote de mação nas mãos. Vivia metendo a régua na bunda dos homens por quem passava, causando uma algazarra danada. Disse Maluco que Lambreta foi enterrada no mausoléu do Tancredo Neves. Prometi-lhe que iria publicar este nosso encontro. Falei sobre o Recanto das Letras, o que o deixou entusiasmado com a idéia. Assim é que hoje, em sua homenagem e a seus colegas, trago um breve relato pesquisado, sobre esta importante profissão.
“A tradição oral napolitana remete ao ano de 1806 o nascimento do ofício de engraxate, quando um operário poliu em sinal de respeito as botas de um general francês e foi recompensado com uma moeda de ouro por isto. O engraxate itinerante trazia uma caixa ao ombro contendo verniz, escovas e espanadores: na cobertura da caixa tinha uma armação de madeira para apoio dos pés, alternadamente. Os engraxates em local fixo, tinham poltronas enormes, quase dos tronos, com cromado dourado e tapeçaria de veludo vermelho. Trabalhavam das 8 da manhã as 8 da noite, com uma breve pausa ao meio dia, para o almoço. Eles ficavam principalmente nas esquinas de cafés, onde eram os pontos mais movimentados. Durante a Segunda Guerra Mundial, no período da ocupação anglo-americana, apareceram os “sciuscias” garotos que para ganhar qualquer coisa, lustravam as botas dos militares, além de terem cópias de jornais, goma de mascar e doces. As condições de luta e vida destes rapazes foram descritas no filme de Vittorio De Sica em “Sciuscia” filme de 1946. Com a migração italiana começaram a aparecer por volta de 1877, na cidade de São Paulo, os primeiros engraxates. Garotos de 10 a 14 anos, os italianinos saiam às ruas pro trabalho ao preço de três vinténs. Em meio a todo o concreto do centro da cidade, o engraxate forja o brilho que falta no mundo. Cabisbaixo, trabalha em silêncio, enquanto o cliente lê o jornal, indiferente à sua existência". Mas não passou despercebido por Rubem Braga que a eles dedicou a belíssima poesia:


O Anjo Engraxate

Ó Anjo Engraxate
como soubeste ó anjo da rua
que tenho os pés de crocodilo?
Como soubeste ó anjo da rua
que meu sapato já foi lacustre?
e que preciso hoje ficar ilustre?
Como soubeste ó anjo da rua,
que eu quero ter (pra que ninguém hoje me eclipse)
os pés de barro resplandecentes
como os dos anjos de Apocalipse?

Pequei com alma, pequei com o pensamento,
Pequei com o corpo, só não pequei com os pés
Vivo de pés no chão e cabeça no céu
(No céu ou na lua?)
Ainda agora senti certo gosto de céu
como se houvesse beijado uma santa na rua.
Tenho os pés inocentes mas em minha cabeça
moram os meus pecados azuis e dourados.
Nem há mal algum em ter pés inocentes.
Pois Cristo não lavou os pés aos seus apóstolos?
Vivo de pés no chão e cabeça no céu
Mas não é o meu chapéu que ponho atrás da porta
na noite de maior inocência.
São os meus sapatos.

Braga – Rubem. (org.) Cassiano Ricardo – antologia Poética: Rio de Janeiro:
Editora do Autor, 1964 , p.71-73. – Fonte: Nilc-icmsc – USP

Afonso Rego
Enviado por Afonso Rego em 31/12/2012
Reeditado em 20/01/2013
Código do texto: T4060769
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