Paulo Freire

Paulo Freire

Conscientização
 

"Não há outro caminho para a humanização – a sua própria e a dos outros – a não ser uma autêntica transformação da estrutura desumanizante. "
 

Uma das características do homem é que somente ele é homem. Somente ele é capaz de tomar distância frente ao mundo. Somente o homem pode distanciar-se do objeto para admirá-lo. Objetivando ou admirando, os homens são capazes de agir conscientemente sobre a realidade objetiva.

Quem melhor que os oprimidos, está preparado para compreender o terrível significado de uma sociedade opressora? Quem sofre os efeitos da opressão com mais intensidade que os oprimidos? Quem com mais clareza que eles pode captar a necessidade de libertação? Os oprimidos não obterão a liberdade por acaso, senão procurando-a em sua práxis e reconhecendo nela que é necessário lutar para consegui-la. E esta luta, por causa da finalidade que lhe dão os oprimidos, representará realmente um ato de amor, oposto à falta de amor que se encontra no coração da violência dos opressores, falta de amor ainda nos casos em que se reveste de falsa generosidade.

Mas quase sempre, durante a fase inicial do combate em lugar de lutar pela liberdade, os oprimidos tendem a converter-se eles mesmos em opressores ou em ‘subopressores’. A própria estrutura de seu pensamento viu-se condicionada pelas contradições da situação existencial concreta que os manipulou. Seu ideal é serem homens, mas, para eles, serem homens é serem opressores. Este é seu modelo de humanidade. Tal fenômeno provém de que os oprimidos, num dado momento de sua experiência existencial, adotam uma atitude de ‘adesão’ em relação ao opressor. Nestas condições lhes é impossível ‘vê-lo’ com suficiente lucidez para objetiva-lo, para descobri-lo ‘fora de si mesmos’.

Isto não quer dizer necessariamente que os oprimidos não tenham consciência de que são pisados. Mas o estar imersos na realidade opressiva impede-lhes uma percepção clara de si mesmos enquanto oprimidos. A este nível, sua percepção de si mesmos como contrários ao opressor não significa ainda que se comprometam numa luta para superar a contradição: um polo aspira à sua libertação, mas à sua identificação com o polo oposto.

Nesta situação, os oprimidos não veem ao ‘homem novo’ como aquele que deve nascer da contradição, uma vez resolvida, quando a opressão dê lugar à libertação. Para eles, o homem novo são eles mesmos, convertidos em opressores. Sua visão é individualista, por causa de sua identificação com o opressor: não tem consciência de si mesmos enquanto pessoas. (...)

A revolução que transforma uma situação concreta de opressão, lançando o processo de libertação, deve ainda enfrentar este fenômeno. Muitos dos oprimidos que participam direta ou indiretamente na revolução, condicionados pelo mito da antiga ordem, buscam fazer dela sua própria revolução. A sombra de seu antigo opressor projeta-se continuamente sobre eles.

Se o que caracteriza os oprimidos é sua subordinação à consciência do amo, como afirma Hegel, a verdadeira solidariedade supõe se combata a seu lado para transformar a realidade objetiva que fez deles ‘seres-para-o-outro’. O opressor não é solidário com os oprimidos senão quando deixa de olhá-los como uma categoria abstrata e os vê como pessoas injustamente tratadas, privadas de suas palavras, de quem se abusou ao venderem seu trabalho; quando cessa de fazer gestos piedosos, sentimentais e individualistas e arrisca um ato de amor. A verdadeira solidariedade não se encontra senão na plenitude deste ato de amor, em sua realização existencial, em sua práxis. (...)

Somente os oprimidos podem libertar os seus opressores, libertando-se a si mesmos. Eles, enquanto classe opressora, não podem nem libertar-se, nem libertar os outros. É pois essencial que os oprimidos levem a termo um combate que resolva a contradição em que estão presos, e a contradição não será resolvida senão pela aparição de um ‘homem novo’: nem o opressor, nem o oprimido, mas um homem em fase de libertação. Se a finalidade dos oprimidos é chegar plenamente humanos, não a alcançarão contentando-se com inverter os termos da contradição, mudando somente os polos. (...)

Nesse processo revolucionário, o diálogo é o caminho entre os homens. É o encontro no qual a reflexão e ação, inseparáveis daqueles que dialogam, orientam-se para o mundo que é preciso transformar e humanizar, este diálogo não pode existir sem um profundo amor pelo mundo e pelos homens. Designar o mundo, que é ato de criação e de recriação, não é possível sem estar impregnado de amor.

O amor é ao mesmo tempo o fundamento do diálogo e o próprio diálogo. Este deve necessariamente unir sujeitos responsáveis e não pode existir numa relação de dominação. A dominação revela um amor patológico: sadismo no dominador, masoquismo no dominado. Porque o amor é um ato de valor, não de medo, ele é compromisso para com os homens.



Fonte: Conscientização: teoria e prática da libertação, uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. Cortez& Moraes, 1980. 

Gelci Agne
Enviado por Gelci Agne em 03/12/2012
Reeditado em 03/12/2012
Código do texto: T4016835
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.