A ALMERINDO, MEU PAI
Pediram-me que escrevesse algo sobre o cidadão Almerindo Rodrigues de Oliveira, o velho Armé, como era tratado pelos mais íntimos, no momento em que a comunidade cruzalmense deseja prestar-lhe uma homenagem. O que me veio à mente, em primeiro lugar, foi a cena de formatura do meu irmão mais novo (somos quatro agrônomos). Terminara a colação de grau quando um ex-presidente do Instituto Bahiano do Fumo, Edgar Chastinet, abraçou meu pai efusivamente, dizendo altissonante algo mais ou menos assim: “Almerindo, você é um herói. Acaba de formar o seu último filho. Lembra do que me disse, em 1943, quando começou a trabalhar no Instituto Bahiano do Fumo? Você afirmara, naquela oportunidade, que haveria de fazer de seus filhos doutores iguais a mim. Meus parabéns, a sua promessa está cumprida”.
Naquele dia sentí muito orgulho do meu pai. Sabia quanto suor e sacrifício e, mais que isso, quantas privações lhe custara essa obstinação em construir um futuro melhor para os filhos, viabilizando aquilo que os sociólogos costumam chamar de diferenciação social ascendente. Entendí também a razão de sua opção consciente por Cruz das Almas, em 1950, quando se lhe colocaram algumas alternativas de transferência, entre as quais Feira de Santana, depois de um desentendimento com o seu chefe imediato, no campo do IBF, em Conceição da Feira. É que Cruz das Almas tinha não apenas o Ginásio e o Curso Científico, mas, e principalmente, a Escola de Agronomia. Seria o começo da realização do seu sonho.
Nesse episódio se pode encontrar os méritos que justificam a homenagem ao cidadão Almerindo. De fato, não são apenas as lideranças formais ou as figuras que se destacam nas ciências, nas artes e nos negócios que constróem a grandeza de uma comunidade. Existem também os homens comuns de visão larga, operários, trabalhadores ou servidores públicos. Esses heróis anônimos, na seriedade com que encaram o seu trabalho, quase sempre mal remunerado, e na sabedoria com que orientam a sua família, no recesso de seus lares, forjam padrões éticos também indispensáveis para as transformações qualitativas da sociedade. Valores que os modismos da massificação cultural e da globalização consumista insistem em destruir nos dias atuais.
O nome de Almerindo inscreve-se na galeria desses heróis. O seu amor por Cruz das Almas, esse querido torrão que possibilitou a concretização do seu sonho maior, foi, no mínimo, tão intenso quanto o do mais devotado cidadão ali nascido. Costuma-se dizer que os que optam por viver em determinada terra, por nela encontrarem a acolhida generosa e o suporte para as suas necessidades espirituais e físicas, acabam se tornando mais “filhos” do que muitos entre os nascidos naquele espaço, sem a oportunidade de escolha.
Ele nasceu em 04 de fevereiro de 1908, em Conceição da Feira, numa família de 21 filhos, dona de um minifúndio. A labuta diária e a falta de oportunidade não lhe permitiram completar o segundo ano primário. Precisava acordar de madrugada para ordenhar as poucas vacas ou limpar um roçado, para depois caminhar mais de uma légua em demanda da escola mais próxima. Carregava o seu almoço numa mochila: carne seca, farinha e rapadura. À tardinha, voltava cansado, obrigando-se a realizar novas tarefas como a de recolher o gado ou ajudar na Casa de farinha. A despeito da adversidade, soube enfrentar os desafios, buscando, na vida adulta, uma ocupação na cidade.
Conheceu D. Edith, com quem viveu mais de 50 anos, tendo como rebentos, além de mim, Everaldo, Neide, Antonio Francisco e Almerindo Filho. Estabeleceu-se como negociante, montando um açougue, em sociedade com um dos seus irmão, e mais tarde, entrou para o serviço público. Mas sempre alimentou a esperança de ter uma grande fazenda de gado, se um dia ganhasse a sorte grande na loteria. Se pela via do sortilégio este seu desejo não se concretizou, no que dependeu do esforço pessoal conseguiu realizar outro que lhe era muito mais caro: a formatura dos filhos.
Este cidadão, ainda que lhe faltasse a instrução formal, ensinou-me lições valiosas. Por exemplo, não foi através dos livros, muito menos nos bancos escolares, que tive o primeiro conhecimento sobre a Revolução de 30. A centralização do poder, o enfraquecimento das oligarquias agrárias, as conquistas trabalhistas, o voto universal e tantas outras conseqüências daquele movimento que assentou as bases da industrialização do País, me foi dado a conhecer, muito antes, pelo velho Armé. Na minha tese de doutorado eu voltaria a trabalhar conceitualmente alguns aspectos desse evento, ao tratar da questão do Estado e a seletividade das políticas públicas. Ao elaborar a tese, tive momentos agradáveis em que a teorização do problema me trazia à lembrança as conversas de pai e filho adolescente. Entretanto, a etapa final foi marcada por uma tensão que me impunha o dilema: concluir a tese, cuja sessão de defesa já estava com data marcada, ou tomar uma licença e viajar para Cruz das Almas e assim passar com o velho Armé que reclamava a minha presença, os seus últimos dias. Mas Deus misericordioso nos deu forças: a ele para resistir um pouco mais ao agravamento da doença, e a mim, reforçando-me a fé e a paciência para levar a bom termo os compromissos e poder chegar a tempo de assistir o velho antes da grande partida.
Mas eu falava da aguçada percepção política do velho Armé, a despeito de lhe ter faltado a instrução formal. O hábito de ler jornais e ouvir noticiários radiofônicos, especialmente os das “estações do Rio”, certamente foi responsável pelo seu alto grau de informação. Apesar da militância ativa na política local, o seu interesse sempre se orientava com mais ênfase para as questões nacionais, guiado principalmente pelas teses do Partido Trabalhista Brasileiro, o PTB de Getúlio Vargas, de quem era seguidor incondicional. Isto depois de uma passagem efêmera pelas hostes do integralismo, que provavelmente lhe proporcionara as primeiras noções da doutrina nacionalista.
Lembro muito bem como lhe eram caros os valores do nacionalismo e a defesa dos oprimidos e injustiçados. Valores que hoje a miopia dos governantes e os interesses inconfessáveis das frações dominantes da sociedade querem fazer parecer fora de moda, mas que na verdade são a chama que alimenta os anseios de soberania e progresso de uma grande nação. Um sentimento exacerbado após o suicídio do seu ídolo maior, Getúlio Vargas, cuja foto até hoje permanece na parede do quarto onde expirou. Na sua perspectiva, os grandes responsáveis pelas mazelas do País eram os trusts internacionais (as multinacionais de hoje), que aliados às “aves de rapina”, como ele se referia aos adversários do trabalhismo, impediam o desenvolvimento do Brasil e a melhoria das condições de vida dos mais humildes. A propósito, o único dia em que o ví chorando copiosamente foi por ocasião da morte de Vargas. Isso depois de noites de vigília acompanhando pelo rádio as demarches da conspiração que vitimou o líder. Essa admiração logo foi transferida a João Goulart e, mais tarde, a Leonel Brizola.
Mas não só a política empolgou o velho Armé. O futebol também era sua paixão, torcendo firme pelo Fluminense. Aliás, a família tricolor, como éramos tratados por Washington de Zé de Afonso, era alvo das maiores gozações toda vez que o Fla-Flu pendia para o Flamengo. Foi assim na Rua do Genipapo, quando os vizinhos rubronegros era a família Zezito Marques e na Rua Alfredo Passos quando o mais fanático cobrador era o Beto de Zeca dois Véio. Isto sem falar nas gozações no Bar do Barrão, a começar por João da Farmácia, Poli, Lélio e outros amigos que infernizavam a vida do velho e de tantos outros tricolores como Tancredo, Cabeça Branca e Santo Bicudo, quando o Fluminense perdia. Imagino que essa polêmica continua em outra dimensão não terrena, já que alguns desses amigos se foram antes do próprio Armé.
Outra coisa que muito agradava o velho era o jogo de dominó. Até que os seus parceiros favoritos se foram, desde Zezito Marques, Zezinho do Mel, Bibi, Alípio Santana, Dr. Raimundo (genro de Ramiro Costa) e a própria Dadinha, em cuja residência o pessoal se reunia para jogar. Depois disso parece que o seu prazer maior era bater papo com os amigos aposentados, na Praça da Prefeitura. Quem passasse pelas imediações poderia constatar o papo animado com a participação de Pamponet, Otávio, Vicente Alfano, Lauro, Pina, Amorim, Cavalcante e Zeca da Breda, entre outros.
Ainda teria muito o que falar sobre o velho Armé. Mas se algo pode ser dito que possa marcar a sua lembrança, resumindo a sua personalidade e o seu modo de agir, os que viveram mais próximo a ele certamente dirão: foi a sua consciência profunda de que é preciso mudar o mundo. Uma mudança que dê oportunidade aos excluídos e injustiçados, para que possam viver condignamente. Que resulte numa nova sociedade onde ninguém passe fome, onde todos tenham trabalho, saúde, moradia e educação. Algo que ele não apenas se esforçava para viabilizar no campo político, perfilando-se entre os que lutam por idéias mais progressitas, como individualmente, ajudando pessoas, na limitação dos seus parcos recursos. Sobretudo quando o problema era a educação. As lições repetidas sistematicamente aos filhos, de que era preciso estudar para se conseguir ser algo na vida, ele também passava a famílias ainda mais pobres; não raro contribuindo financeiramente para que não faltasse a outros os livros e o material escolar que sempre se esforçou por oferecer aos seus, à custa de muito sacrifício.
Eis ai, em rápidos traços, o perfil do velho Armé, na ótica de um filho reconhecido que guarda as melhores lembranças de sua bondade, companheirismo, solidariedade e espírito de luta. E que se sensibiliza também com o reconhecimento da comunidade cruzalmense que deseja homenageá-lo, colocando o seu nome em uma rua. Uma homenagem que ele, na sua humildade, certamente dividiria com tantos outros cidadãos pobres de Cruz das Almas que anonimamente constróem a grandeza de sua cidade.
Brasília, 25 de maio de 1995
Cyro Mascarenhas Rodrigues