Homenagem
ao Coronel Capelão da FAB José Cesário Gonçalves


(Discurso de Roberto Gonçalves proferido na Capela do Centro de Instrução e Adaptação da Aeronática (CIAAR) durante a Missa presidida pelo Cardeal Dom Serafim Fernandes de Araújo, no dia 24 de julho de 2011 em Belo Horizonte/MG.)
 
   Estou aqui, hoje, para homenagear dois seres humanos. Suas vidas, idas e vindas na estrada do tempo. Nesse momento sublime, delicado e nobre, estou diante do altar de Deus e no coração da Pátria, em continência. Estou com os joelhos dobrados e o coração acelerado de emoção.
   A benção de Deus é a presença de diferentes pessoas em nossa vida, como pai e mãe e, em alguns casos, madrasta ou padrasto que nos querem bem e nós a eles.
    “Se tens uma madrasta e com ela tua mãe, poderás testemunhar à primeira o teu respeito; irás, porém, constantemente ao encontro de tua mãe”.
   A vida... Ah, a vida! A vida é uma brincadeira que se brinca sem brincar. A vida nunca é pequena, pequeno é o seu altar.
   Estou aqui, hoje, guardando em meu coração cada palavra, cada gesto, cada puxão de orelha, recebidos no lar cristão de Mozart e Ana.
     Mulheres, disse o poeta, mulheres são tecelãs. Tecem sonhos com fios de lágrimas... Mulheres tecem vidas em suas barrigas com esperanças e alegrias infantis. Mulheres são feiticeiras. Inventam magias e encantamentos, e atraem e cativam com um simples olhar. Mulheres são meninas. Acreditam em príncipes encantados e finais felizes. Mulheres são guerreiras. Enfrentam a luta com galhardia e não esmorecem mesmo quando cansadas. Mulheres são sábias. Trazem em si toda a sabedoria do mundo, ao repartir entre os filhos o pão, o carinho, e o próprio tempo. Mulheres são especiais. Mulheres são seres próximos de Deus. Mulheres são anjos. Mulheres são mães. A mais perfeita tradução do mistério da Eternidade da alma.
    Estou aqui, hoje, portanto, acariciando os seus 106 anos de vida, os 106 anos de vida de Ana Freire Gonçalves, de pássaro a flor ─ viva, “sedutora, árvore ereta que deu bons frutos e não se verga.”
   Uma civilização é feita de seres humanos. Uma civilização só vive enquanto seus componentes estão dispostos a lutar por ela. O filósofo descobre os ideais da humanidade e os torna discerníveis; impede o seu encobrimento, comunica-os na sua verdade. É-lhe intolerante a repressão, que oculta a verdade, e a mentira que a falsifica.
     Estou aqui, hoje, para sorrir e chorar; chorar e sorrir se preciso for, diante da esfinge impenetrável, labor paciente de milhares de homens, muda, imóvel, que deixou impressa naquele ar seco, a esperança de eternidade e o desejo de um estado político sólido e firme. A esfinge é uma imagem mitológica, criada no Egito Antigo, com o corpo de leão e cabeça de ser humano – geralmente de um faraó. Para os egípcios antigos a imagem de uma esfinge significava poder e sabedoria. Serviam, no imaginário, como protetoras das pirâmides e templos.
    Certa vez minha mãe me pediu que a ensinasse, que a introduzisse no ritual das Forças Armadas. Dobrar os joelhos ─ ela sabia ─ bastava olhar para eles, e neles ver as feridas provocadas por constantes orações. Mas ela queria mais, queria viver com cada filho seus sorrisos e lágrimas, suas caminhadas. Lágrima de mãe é água benta. Ela queria participar da noite escura, da qual fala São João da Cruz. Ela queria, em continência, amar a farda que o seu filho ostentava com indisfarçável orgulho.
   Quando fui recebido pelo Cardeal Dom Serafim Fernandes de Araujo, em audiência, disse a ele: “O morto amado, querido Cardeal, o morto amado morre todos os dias”. Ele, então, me disse: “Filho, a angústia não faz parte do amor”.
      As flores que ornam este ambiente e a alegria que se vê no rosto e no coração de cada um de nós indicam que hoje é dia de festa. Festa é reunião alegre, conjunto de cerimônias que celebra qualquer acontecimento; solenidade, comemoração. E agora nós estamos festejando, estamos solenizando no altar do Senhor a ânsia de liberdade. Nossa alma pede eternidade junto ao Pai.
     A Pátria não é somente um território limitado geograficamente. Além do território, que é o corpo material, a Pátria compreende também e, antes de tudo, uma alma invisível, formada de lembranças, de sentimentos e vontades iguais. O território é importante, sem dúvida, mas o que nos permite dizer que há uma Pátria Brasileira, é a existência, em nosso País, de um grupo humano que tem as mesmas recordações do passado histórico. Que é animado do mesmo sentimento de afeição por esta terra. Que tem a mesma vontade de viver junto e, também, de um conjunto formado pelo solo nacional e pela comunhão de sentimentos e pensamento do povo que herdou esse território, que nele vive e trabalha. A Pátria é para cada um de nós, a união de todos.
     Ah... Meu querido Zé! Você soube, como ninguém, viver as virtudes teologais: fé, esperança e caridade, acrescentando, a cada uma delas, a luz e a cor de sua generosa existência humana. “Ninguém, ninguém é cristão por aprender teorias ou por cumprir regulamentos! Somos cristãos porque encontramos o Portador da Graça e, convertidos, passamos a pertencer, como dizia Charles Péguy, o grande escritor francês, a “uma certa raça ascendente, a raça mística, a uma raça espiritual e carnal, temporal e eterna, a um certo sangue”.
     O ditado, popular, mineiro, nos adverte a não elogiar o burro antes de um atoleiro. Você, Zé, atravessou o atoleiro existencial, o atoleiro de sua vida, com determinação e coragem. Você viveu com serenidade o matrimônio da batina com a farda. Você teve o sangue de aventureiro, a irreverência fina de um filósofo e o desprendimento de um poeta. Você, Zé, foi conviva assíduo da mesa de Santo Tomaz de Aquino, Santo Agostinho, São Francisco de Assis. Ah, Zé, o Zé que “promoveu o exercício contínuo na arte de escutar e pensar”. Ah... Meu querido padre, que trocava a batina pela farda, a farda pela batina. Ah... Meu querido coronel Gonçalves, quanta saudade de seu olhar amoroso, de suas mãos sacerdotais, mãos tenras, honradas de sua infância ─ mãos que sabiam trabalhar, rezar e brincar. Saudade de seu carinho, de nossas intermináveis interlocuções humanas, existências, filosóficas. Nada, ou quase nada, hoje, no mundo, me assusta. Nesta Capela, a sua inteligência emocionou corações com mensagens poéticas, de rara beleza literária. De criança a monge beneditino, (Ordem de São Bento) com o nome de Dom Miguel Ângelo Maria Gonçalves, de monge beneditino a padre diocesano, de padre a coronel, de coronel à vida eterna. Posso, dizer, com Louis Lavelle, que toda duração é espiritual, e não material, pois a duração só conserva o que ela espiritualiza. Eu te acompanhei em tudo e em tudo estive com “o seu coração e sua alma, com a ternura de muito amar”. Chorei com suas lágrimas e sorri com seus sorrisos.
     “A expressão de um sentimento não é a exposição de uma verdade fundamental... Como uma lágrima, como um sorriso, não é mais que um reflexo do que se passa em nosso íntimo”. Se isso, essa simples saudade, equivale a acreditar em alguma coisa, então ainda acredito em alguma coisa. Neste mundo, nada é pequeno nem grande a não ser por comparação.
    Nesta Capela, você celebrou o meu casamento. Nesta Capela, você batizou meus três filhos. Este lugar é um pedacinho de Deus que você deixou como marca visível de sua abençoada vida.
      Estou me sentindo, hoje, querido Cardeal Dom Serafim Fernandes de Araujo, estou, aqui e agora, na “Palma da mão de Deus”
    Somos vida e somos história. Somos enredo e biografia. Somos memória e somos exemplo, e com exemplo construímos a história de nossa cidade, de nosso tempo e de nossas lutas.
       “Existe a surpreendente arte de amar.
        E o artista é você.
         sou eu,
         somos nós,
         no exercício de viver” (Rosângela Rossi)
      Seja, querido irmão, padre José, nosso intercessor diante de Deus. Até... Até um dia.
        Amém, amém, amém!
        Amem, amem, amem!

                                    Roberto Gonçalves
                                             Escritor