Duas vidas
DUAS VIDAS
Naquela hora tardia da noite não se conseguia vislumbrar mais que dois metros à frente do nariz. O tempo havia limpado mas, de repente o nevoeiro veio avassalador e medonho e tudo ficara cinzento escuro.
De quando em vez as pessoas passavam à nossa frente sem se enxergarem, percebiam-se apenas pelo tropeçar dos seus passos e às vezes pelo arfar ofegante da respiração.
Comecei a pensar que a neblina voltou para ficar, também já era tempo dela e a cerração nesta época do ano é sempre notória, havería-se de ver o que ia acontecer na próxima semana.
O Domingo se avizinhava e era exatamente esse dia que meu pai escolhia para nos ocupar, a mim e ao meu irmão. Sábado à noite ele já avisava:“amanhã, levantar bem cedo, temos que alinhar as pedras da vinha do D.Froio“.O nome era o de uma propriedade onde ele vinha plantando pés de uva quase que heroicamente em vista da pobreza das terras e da situação do relevo das mesmas.
Meu pai era muito teimoso e o fato era que ele conseguiu formar o D. Froio um belo jardim, embora tenhamos que tecer aqui bravos elogios a minha mãe que sempre a seu lado de enxada na mão o ajudava insistentemente. Minha mãe era uma mulher “de armas”, ela sabia segurar e empurrar meu pai quando necessário.
Os seus ensinamentos foram de primordial importância no decurso de nossas vidas. Eles nunca nos ministraram palestras falando daquilo que poderíamos fazer ou deixar de fazer, eram os seus atos e gestos, sempre eivados de profundo caráter e bem-querer que a gente ia absorvendo muito naturalmente pela observação.
O trabalho, a honestidade e a humildade eram suas práticas diárias. Fomos sempre tirando lições: do trabalho aprendemos que é uma das fontes de capital, e da honestidade também, pois se agente não tem capital os nossos amigos têm, sabendo da nossa pontualidade no pagamento, quanto à humildade sem jugo a assertiva é semelhante, se se é humilde e tem-se a infelicidade de um tropeço na vida, as pessoas nas quais semeamos a humildade vão-nos colocar no mesmo lugar em que estávamos antes. Eles se orgulhavam constantemente dos filhos que estavam educando, não éramos santos, quando necessário umas palmadas não faziam mal a ninguém, quando preciso lá estavam elas prontas a cortar o mal pela raiz.
Apesar de analfabeto meu pai era um idealizador e isso não o impedia de fazer projetos para os filhos: minha irmã,a mais velha dos filhos casou cedo,mas isso nunca a impediu de tornar-se uma exímia em costura, bordados e malhas que fazia para uso próprio e para presentear seus familiares. Eu mesmo fui agraciado por algumas das suas preciosidades. Mas lá estava novamente a interferência de meu pai para que meu cunhado fosse funcionário público e entrasse para trabalhar nos correios, apesar de forças inimigas trabalharem contra.
O meu irmão do meio, tinha feito a instrução primária e meu pai vislumbrou para ele a profissão de mecânico de automóveis e futuramente a montagem de uma grande oficina. Com isso ele iria obter dois resultados: o primeiro seria o futuro de seu filho e o segundo fazer frente a certo mecânico de quem ele sentia certo desprazer. Meus progenitores tinham recebido de doação de seus avós alguns hectares de terra divididos em duas propriedades: uma,o Abelhão a outra dom Froio de que já falei anteriormente. Eram terras praticamente nuas e terra mesmo não tinham,eram só pedras, eles trabalharam nelas até à exaustão para fazer delas lugar de plantio de bacelo que geraria o viço das futuras vinhas onde eram colhidas as uvas da melhor qualidade que iriam fazer o vinho quase que artesanalmente e seria vendido como o famoso vinho da taberna do António Moreiró. Todos que o bebiam sentiam o seu paladar frutado. Até mesmo o meu venerando diretor e padre, que o consumia diariamente às refeições e nas missas, na hora da comunhão,via nele um precioso néctar. Eu era o mais novo,também tinha acabado o meu curso primário e meu pai coçava a cabeça, já tinha traçado o meu destino mas não tinha a solução para resolvê-lo. Queria que eu continuasse os estudos, mas como ele falava, tinha que primeiro endireitar a espinhela,a sua situação econômica não lhe era favorável,tinha gasto sem ter, se remordia por dentro e se perguntava por que é que um funcionário público podia mandar seu filho estudar fora, e ele que era um lutador,que trabalhava de sol a sol junto com a esposa,que chafurdava a terra,que plantava,que colhia o cereal,tinha que se contentar ver seu filho mofar ou seguir suas pegadas. Esse era o caminho que ele não queria para mim,embora a profissão de lavrador fosse das mais honrosas,era das mais penosas. Tinha tomado uma decisão:”ficas ajudando-nos na taberna e na lavoura e depois se verá".Meu pai era de idéias firmes e fixas,o meu destino já estava traçado e na sua cabeça,tinha que ser um doutor: médico,advogado,sabia lá o quê,contanto que fosse doutor. Ele tinha lá as suas razões que eu viria a descobrir mais tarde (continua............)