Sonhando com o Diabo
Foi numa tarde fria de domingo que o vi pela primeira vez.
Eu estava saindo do metrô Consolação.
Parei na tão conhecida esquina da Paulista com a Augusta, fechei minha jaqueta até o pescoço, ajeitei meu cachecol e acendi um cigarro.
Ele vinha em minha direção, caminhando lentamente entre arranha-céus cinza e muito iluminados da avenida mais conhecida de São Paulo. Sabe quando seus olhos involuntariamente pousam sobre algo e você não consegue desanexá-los dali? Então, ele era essa coisa.
Algo nele me prendia a atenção à ponto de todo o meu cigarro ser queimado e eu permanecer ali, imóvel, estática, sem reação alguma, sem pensar em nada.
Focando-me tão somente em observá-lo, em tentar decifrá-lo.
Decidi segui-lo, e tentar entender o que exatamente naquele homem me perturbava tanto. Mantinha uns dez metros de distância dele. Distância essa que não me impedia de sentir o cheiro de sangue, de lixo e de flores que ele emanava.
Ele respira com dificuldade, se apóia nas grades baixas e nos portões das lojas fechadas e nos postes gelados.
Embora o esforço também seja físico para se manter respirando, a impressão que tenho é que seus braços fortes e ombros largos já não lutam por mais nada que não seja o voltar para a escuridão de suas poucas horas de solidão e paz em um retângulo feito de espuma e tecido, dentro de outro feito de tijolos e cimento.
"Ele tenta levantar bandeira branca à cada toque do despertador, mas em vão - Sua mente é seu campo de batalha."
Descalço, com uma camisa branca entreaberta, cabelos desgrenhados e embaraçados. Caminha. Com o peso do mundo em seus pés. O peso das mágoas que causou em suas costas. E um milhão de dúvidas na cabeça.
O grande monstro existencial está sentado no topo do maior dos prédios desta avenida onde mostra-se a hora e a temperatura do tempo, e continua tragando sua vida calmamente, num cigarro recheado de frustrações, muito bem enrolado numa folha verde com a cara de algum presidente estampada.
A fumaça é solta, lenta e dolorosamente.
Branca, suave, bela e com formas arredondadas de uma silhueta feminina que se desfaz quando em contato com o vento gélido que corta aquela avenida.
Ele - o vivente passivo - por vezes aspira essa fumaça na intenção de sentir-se tão bem quanto os outros parecem estar, tão felizes e em paz com a condição que lhes foi dada e simplesmente aceita de braços abertos... tão simples e bem menos sofrível.
Ele tira todo o ar de seu peito, arqueia o corpo e puxa todo o ar que consegue como alguém afogado num mar de lágrimas, precisando de um fôlego de vida.
O ar viciado e sujo da cidade penetra aquele organismo puro, limpo e ele tosse com os olhos cheios de lágrimas.
Ah, que sonho seria pra ele, não ter interesse algum em achar respostas.
Desconhecer a condição de anulação total do conhecimento de onde viemos, de pra onde vamos e, principalmente, do que estamos fazendo e porquê o estamos fazendo, que ele conhece tão bem.
Continuo o observando, atônita, chorando, me enxergando em cada movimento seu, me identificando em quase tudo.
Ele tira um recipiente de metal do bolso, me parecendo whisky.
Nesse momento consigo enxergar através de suas roupas.
O álcool penetra seu corpo e mescla seu sangue de dúvidas de todas as cores.
As dúvidas amarelas causam-lhe ânsia e as vermelhas, vontade de morrer. As pretas causam agonia e vontade de escrever; essas são maioria.
Ao seu lado, passeiam mulheres gigantes tentando se equilibrar em cima de seus saltos altíssimos. Algumas se engasgando com o próprio batom. Outras morrendo asfixiadas com o próprio perfume... mas todas aparentemente felizes e satisfeitas com sua própria falsidade.
Carros que ele nunca poderá ter.
Mulheres que ele nunca poderá ter.
Realidades que não competem à sua sorte.
A repulsa pela humanidade (incluindo ele mesmo) o domina e é nessa hora, onde há a acentuação do vazio existencial que já habita dentro de seu peito jovem, porém muito cansado, que se abre um buraco no chão e outro no céu. Ambos os buracos negros, frios e sedutores.
Dois vácuos silenciosos bem no meio do caos da cidade cinza e barulhenta, das buzinas incessantes, das vozes clamantes por atenção e da música que sai do fone enfiado em seu ouvido.
A sensação que domina sua mente neste momento é a de ser o condenado que constrói o próprio inferno; que planeja e assina a própria sentença, ao tentar traduzir em palavras tudo o que acontece à sua volta.
O que ele não sabe, ou talvez até saiba mas não com a relevância exata da coisa, é que sua caneta é bem mais afiada que todas essas espadas; e que os papéis por onde essa caneta passou são bem mais resistentes que qualquer escudo.
Papéis caem de seus bolsos, saem de sua camisa, de dentro do seu cabelo, da sua boca, de seus ouvidos.
Ele olha pra trás, vê todas aquelas coisas escritas em papéis de matéria tão perecíveis, com conteúdo tão temporal e subjetivo, e acha que é tudo o que tem. E que, se o que tem, é levado pelo vento e pelo tempo tão facilmente, realmente sua vida não vale a pena.
Sim, é isso mesmo, mas o que a fumaça que a cidade insiste em soprar em seu rosto angelical embora muito machucado não o deixa ver, é que se não fosse todo essa sangue que sai do seu peito sem manchar sua camisa social, não haveria tinta pra que sua escrita continuasse viva.
Ele para, se vira e eu posso ver seus olhos derramando o líquido vermelho que pinga em suas mãos em formato de concha.
Vinte e cinco anos sonhando demais com a realidade.
Vinte e cinco anos realizando de menos seus sonhos.
Pedindo socorro em silêncio.
Usando o sangue e a desgraça a seu favor.
Fazendo dos males da vida a matéria prima de suas centenas de obras primas. E iluminando derrotas frias e escuras com suas palavras quentinhas vindas do inferno. Mas principalmente, tornando belo e dourado o vermelho do sangue derramado pelo que se acredita.
Os dois buracos se fecham.
Uma mulher com uma bunda enorme passa ao seu lado e ele enxuga as lágrimas vermelhas pra poder apreciar melhor a vista.
Eu também entorto um pouquinho o pescoço pra olhar melhor algumas barbas e pares de braços fortes e tatuados que passam do outro lado da rua.
Ele olha pra mim. Rimos.
“Não valemos nada, não é mesmo?” – Ele diz.
“Não mesmo. Mas mesmo rubro, negro e safado, você conseguiu continuar dourado, Ponyboy!” – Respondo.
Caímos numa gargalhada tragicômica e agonizante. Sufocando o choro.
Nesse momento eu acordo,
Sento em minha cama, ainda atônita, e estranhamente sei exatamente quem foi o protagonista desse sonho. Tenho a vontade de escrevê-lo. E assim faço... E assim o fiz.
Para meu amigo,
Rafael Abreu (Rafromhell).