VOCÊ SE LEMBRA, MÃE?
Você se lembra, mãe,
de quando a gente ia à feira juntos,
cedo do dia, quando o sol mal despontava,
mas já estava queimando forte
nas ladeiras da Bahia?
Fazíamos a lista de compras
e quanto mais dinheiro levávamos
menos comida trazíamos
A sacola de lona listrada,
vazia, já era pesada
Pela ladeira de Água Brusca
descíamos até Água de Meninos
e deixávamos escapar num suspiro:
- Na volta, hein?
A ida sempre mais fácil,
a volta fazia sofrer:
carambola, jaca mole,
arroz, feijão, açafrão,
coisas leves e pesadas,
cargas que faziam doer
Subida sempre difícil
às dez e tantas da manhã,
sol rachando de quente,
desafiando o acauã
Você respirava fundo,
eu derretia em suor,
o tempo corria ligeiro,
da gente ninguém tinha dó
Lembra que você sempre dizia
que um dia seu coração ia explodir,
como aconteceu com vovó?
Foi angina, mãe,
foi angina que matou vovó,
e me lembro muito bem
de como foi tudo tão rápido;
foi fulminante e mortal
Não deu-se tempo pra nada,
foi corre-corre, rezaria,
enterro negro e fugaz,
lembrança que em mim ficaria
Lembra quando Gal cantava
"Ser mãe é desdobrar
fibra por fibra
o coração dos filhos"?
Versos não sei de quem,
som levado pelo vento
adocicando a canção,
trazendo até certo alento
Depois a escola me afastou de você,
o trabalho também ajudou;
o tempo passou
e a estrada me levou pelo mundo
Seu coração não explodiu,
nem teve angina como vovó
O sol parece mais quente,
virei poeta, virei gente!
A ladeira continua inclinada
e da feira não restou nada,
pois um incêndio a levou
Você se lembra, mãe?
© Fernando Tanajura
*(in Coisas do coração - Editora Scortecci São Paulo/SP - 1993)
*(in RETRATOS e COISAS DO CORAÇÃO - Editora João Scortecci - São Paulo/SP - 1995)
*(in DOS BEIJOS - Editora Blocos Maricá/RJ - 1999)