LIRA DOS TRINTA ANOS

Walter de Queiroz Guerreiro


Era 1968. O dia um fim de semana, sexta ou sábado sem hora marcada, open-house na casa de Savério Castellano. Chamo de open-house, sem a pretensão que depois se tornou comum, das reuniões pretensamente informais que foram a tônica dos yuppies nos anos oitenta. Savério realmente recebia de casa e braços abertos todos os amigos, conhecidos dos amigos, artistas, intelectuais de todos os matizes, alunos, qualquer um que quisesse bater papo, beber, viajar na fumaça acre-azulada na grande casa do Sumaré.
Para aqueles que não o conheceram, Savério era um excepcional gravador, pintor e litógrafo meticuloso, autor de trabalho requintado na execução e enxuto na forma, amigo de Mario Gruber e um dos pioneiros no uso da computação em arte. Em torno de Savério ou envolvidos por uma ligação inexplicável orbitavam figuras como Mário Schemberg, físico nuclear e teórico da arte, Fernando Novaes, titular de História na USP, Wesley Duke Lee que criava as primeiras “instalações” no Brasil e tantos outros. Naquelas amplas varandas e salas, deitados nas redes, esparramados nos sofás, agrupados nos corredores trocavam-se idéias, opiniões e teorias eram formuladas que o tempo se encarregaria de refutar, e agora passados trinta anos, na maior parte confirmar.
Entre uspianos e puquianos encontrei Savério que me apresentou uma figura alta e atlética, irradiando simpatia e envolvido em grande discussão sobre a força da palavra: era Lindolf Bell. A seu lado, sorrindo da veemência, uma jovem morena que era sua musa, Anna Maria Kieffer, hoje uma das maiores soprano-lírica brasileiras. O interlocutor centro da polêmica com Bell era jovem dândi, artista e que se tornaria crítico de arte, Olney Krüse. Olney construíra naquela ocasião uma série de trabalhos combinando pintura, escultura e textos, no caso poemas, o que hoje chamaria arte-objeto, verdadeiras colagens tridimensionais, em que as relações estruturais, através de metalinguagem, criavam novos significados para os símbolos empregados.
A questão era exatamente essa, qual a necessidade de texto como suporte do discurso plástico. Bell condenava o uso do texto para explicar ou reforçar algo que deveria estar contido na própria linguagem plástica e afirmava categoricamente
que a palavra deveria ser respeitada, que ela em si se bastava. Sua defesa era um discurso pelo uso contido, pela busca da essência subjacente na palavra, aproximava-se até dos poetas concretistas então em voga, mas ia mais fundo porque sua defesa não era apenas pela forma, pelo estético da palavra e sim pelo conteúdo poético que habitava o sentido.
Juntou-se então o Bira, Ubirajara Ribeiro, igualmente artista e arquiteto, afirmando que o que interessava era o registro do momento, a palavra escrita que aliás ele empregava em abundância, sendo o registro do fluxo da vida, afirmação da presença do artista e do homem como ser. Wesley ao seu lado jogava tudo para o ar, dizendo que tudo não passava de mero detalhe, que a arte é muito maior que a presença ou ausência da palavra, e que em arte tudo é soma.
Penso na palavra destino, e naquele momento mágico de encontro de mentalidades tão diversas, da discussão aberta em torno de algo tão singelo quanto a palavra e daquilo que só fui aprender muito mais tarde lendo os textos sufi, da criação divina do verbo. Que contribuições e quantas contradições criadas naquela dialética, grande renovação humanista naquele encontro. A convergência de ciência e arte, do raciocínio lógico da ciência pura e do pensamento filosófico seria hoje bastante inconcebível, dentro da compartimentação nas esferas do conhecimento.
Reflito sobre aqueles tempos e lastimo meu raciocínio frio, lógico e científico advindo das ciências exatas e de uma admiração incontrolável por Bertrand Russell, numa postura cética frente ao acaso. O que nos remete outra vez a Savério Castellano e á sua visão mística do universo formado por ligações desconhecidas, alternância de luz e sombra, relações a serem desvendadas entre o mundo e o homem, a negação do acaso.
Através de formas tubulares, evoluindo constantemente no espaço seus tubos alternavam luz e sombra, o existir e o não existir, a conjuntura astral com a intuição da realidade. Nisso ele se aproxima de Ubirajara na construção do jogo matemático de possibilidades visuais e de Schemberg ao concordar que as sucessões de acasos têm de se submeter a uma causa comum, talvez uma atração que rompe a lei das probabilidades.
As formas tubulares fechadas teriam aquele significado de uma realidade transcendental que não se consegue desvendar, um caminho a ser percorrido que não tem volta, especialmente ao assumir a forma de oito deitados, símbolo do infinito, na forma fechada situando-se o equilíbrio cósmico, o paradoxo da fita sem fim de Möbius.
Passaram-se vinte e cinco anos, reencontro Bell e relembramos através das “Annamárias” aqueles instantes e o acaso que outra vez nos reunia. Podia agora ver a grandeza de Bell como poeta, a lapidação contínua da palavra, sua razão de ser, a busca incessante do significado da palavra dita, o sofrimento de extrair da forma aparente o conteúdo oculto, indo além do som, como, aliás, conversamos recentemente sobre Ferreira Gullar, que igualmente se afastara dos concretistas pela forma ascética do verso. Bell ia além, não buscava apenas o som pelo som, o efeito tonitruante do verso declarado, buscava o som que albergava o sonho, seu sonho, sonho de todo homem.
1998. Bell agarrado à flor do astro-rei se foi, e me vem à mente a carta que o monge Zen Bashui escreve a um de seus discípulos que esta à morte: “Seu fim é sem fim, como o floco de neve que se dissolve no ar”. O floco de neve, um pequeno subsistema dentro do universo se dissolve no grande sistema, mas a essência continua presente. Retorna a fita sem fim de Möbius, o Finito – Infinito que é o significado de nossa existência, a passagem dos ciclos que não se repetem, mas somam.

Passam os cavalos do tempo
a cavalo passam.