Carta Aberta ao CTG Rincão Verde

Procurei adiar o que pude, mas o encontro estava marcado entre a poetisa anônima e o assoalho do CTG Rincão Verde que estava sendo trocado.
Quando o dia do início da reforma chegou, não tive coragem de ouvir os gritos de socorro que provavelmente ecoaram pelas bordas do salão.
Eu bem sabia que a equipe de trabalho não teria nenhuma afinidade nem remorso de fazer a troca do velho chão de madeira por uma novinha de puro Ipê. Afinal, nenhum deles havia estado dançando a vida toda ali como eu e alguns outros.
Demorei dias de luto em mim mesma, calada. Mas era inevitável minha presença para contar a história do outrora e do agora.
Era a nova roupagem do piso a ser revestido, tal qual foi feito do fôro um a uns tempos atrás. Não imaginei que seria tão doloroso ver o chão despido, inerte.
Hoje tive coragem, vim olhar com meus próprios olhos o que faziam com o chão batido. Estava alquebrado, com fendas e buracos expostos aos olhos de bem poucos.
Passos entrecortados me levaram à pilhas de madeira já empilhadas, umas com pregos, outras sem nada. Tudo organizado com divisão de madeira com pregos, sem pregos,pilhas para serem aproveitadas ou não. Dependeria de quem as notasse.
Vi a olho nú, o que ninguém percebeu... Os sonhos escoavam pelas frestas correndo assustados por terem sido despertos com o barulho. Ora se esreguiçando, ora reclamando terem sido descobertos após tantos anos.
Na ânsia de salvá-los fui pegando-os um a um. Estavam amarrotados, amassados, dobrados, alguns em formato de papel de bala mandando beijo como antigamente. Eles tinham ficado ali no subsolo, encrustados no vão da madeira, desistidos.
Até o momento em que cheguei, intrometida aparentemente familiar, resgatar sobreviventes de amores já desistidos.
Não ousei abrir os sonhos em forma de bilhete, não seria difícil encontrar os meus ali emaranhados ou quem sabe dispersos no pó de madeira. Há coisas do passado que devem permanecer ali mesmo, hibernando.
No outro canto, pedra de anel enroscada no palco, como se tivesse ficado ali todo o tempo assistindo aos fandangos. Certamente caira do dedo da prenda ao dar o laço no lenço do peão.
Jamais esquecerei o barulho ensurdecedor da furadeira, do martelo e da madeira chorando. Depois de vinte e poucos anos é difícil realmente trocar de roupas... ser novo assoalho para esconder ou realizar novos sonhos...
Como testemunha e cúmplice desse momento de transição, dou uma última olhada na pilha de madeira, roubo um pedaço como lembrança do muito muito que ali havia vivido.
Na mala de garupa, coloco os sonhos perfilados no ombro e saio do salão carregando o que ali existia de mais precioso.
A partir de então, serei guardiã de todos aqueles segredos, não vistos pelo homem construtor e que estarão nas mãos de uma mera poetisa apaixonada pela vida.
Railda
Enviado por Railda em 18/01/2012
Reeditado em 06/01/2017
Código do texto: T3447513
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