JACINTA PASSOS E A POESIA MILITANTE

por Enzo Carlo Barrocco

Jacinta Veloso Passos (Cruz das Almas 1914 – Aracaju, SE 1973) poeta, cronista, jornalista e ativista política baiana foi uma das baluartes da literatura feminina do século XX. As tradições africanas, as canções infantis e a cultura do fumo marcaram profundamente a sua poesia já que conviveu na infância com esses aspectos. Depois de 1939, com a eclosão da Segunda Guerra Mundial envolveu-se com a política participando de movimentos em favor da paz mundial e do final da ditadura do Estado novo. Envolveu-se, também, com grupos de esquerda. Seu segundo livro, Canção da Partida (São Paulo, Edições Gaveta), contendo dezoito poemas, três transcritos do livro anterior, recebeu excelentes críticas de intelectuais do porte de Aníbal Machado, Antonio Candido, Gabriela Mistral, José Geraldo Vieira, Mário de Andrade, Roger Bastide e Sérgio Milliet. Por um tempo viveu em Petrolina, PE, sozinha e em extrema pobreza depois que foi diagnosticada com esquizofrenia, sendo que em 1962 foi para Aracaju. Também morou sozinha em Barra dos Coqueiros, povoação de pescadores situada em frente à cidade. Vivia em situação precaríssima em um casebre de madeira, à beira do rio. Tinha uma máquina de escrever, onde, à noite, datilografava poemas e textos políticos, que distribuía pelas ruas durante o dia. Numa época de grande agitação política, desenvolveu sozinha e ao lado de integrantes do PCB local, intensa militância junto a pescadores, estudantes e trabalhadores, inclusive após o golpe militar de 1964. Jacinta faleceu em um sanatório, internada depois que foi detida pichando os muros com palavras de ordem contra a ditadura. Jacinta publicou quatro livros: Nossos Poemas (1942), Canção da Partida (1945), Poemas Políticos (1951) e A Coluna (1957) – todos em edições pequenas. Foi casada com James Amado, irmão de Jorge Amado e teve apenas uma filha chamada Janaína Amado, também escritora. Jacinta militou e lutou incessantemente pelos excluídos, tendo sido, inclusive presa por sua posição contra os desmandos do governo da época. Fiquemos, portanto, com três raríssimas jóias produzidas pelo vasto universo da mente de Jacinta.

CANTIGA DAS MÃES

Fruto quando amadurece

cai das árvores no chão,

e filho depois que cresce

não é mais da gente, não.

Eu tive cinco filhinhos

e hoje sozinha estou.

Não foi a morte, não foi,

oi!

foi a vida que roubou.

Tão lindos, tão pequeninos,

como cresceram depressa,

antes ficassem meninos

os filhos do sangue meu,

que meu ventre concebeu,

que meu leite alimentou.

Não foi a morte, não foi,

oi!

foi a vida que roubou.

Muitas vidas a mãe vive.

Os cinco filhos que tive

por cinco multiplicaram

minha dor, minha alegria.

Viver de novo eu queria

pois já hoje mãe não sou.

Não foi a morte, não foi,

oi!

foi a vida que roubou.

Foram viver seus destinos,

sempre, sempre foi assim.

Filhos juntinhos de mim,

Berço, riso, coisas puras,

briga, estudos, travessuras,

tudo isso já passou.

Não foi a morte, não foi,

oi!

foi a vida que roubou.

1935

Tenso como rede de nervos

pressentindo ah! novembro

de esperança e precipício.

Fruto peco.

Novembro de sangue e de heróis.

Grito de assombro morto na garganta,

soluço seco dor sem nome. Ferido.

De morte ferido. Como um animal ferido. Luta

de entranhas e dentes. Natal.

Sangue. Praia Vermelha.

Sangue.

Sangue. É quase um fio

escorrendo

sangrento

tenaz

por dentro dos cárceres,

nas ilhas

e nos corações que a esperança guardaram.

CANÇÃO DO AMOR LIVRE

Se me quiseres amar

não despe somente a roupa.

Eu digo: também a crosta

feita de escamas de pedra

e limo dentro de ti,

pelo sangue recebida

tecida

de medo e ganância má.

Ar de pântano diário

nos pulmões.

Raiz de gestos legais

e limbo do homem só

numa ilha.

Eu digo: também a crosta

essa que a classe gerou

vil, tirânica, escamenta.

Se me quiseres amar.

Agora teu corpo é fruto.

Peixe e pássaro, cabelos

de fogo e cobre. Madeira

e água deslizante, fuga

ai rija

cintura de potro bravo.

Teu corpo.

Relâmpago depois repouso

sem memória, noturno.

***

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Enzo Carlo Barrocco
Enviado por Enzo Carlo Barrocco em 09/01/2012
Reeditado em 09/01/2012
Código do texto: T3430897
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