Um anjo passou pela minha vida

Deus coloca em nossa vida anjos para nos amparar, e proteger. Eu conheci um, ou melhor, uma!

Lembro-me de sua voz doce, de seu perfume gostoso com cheiro de quem acabou de sair do banho. Do seu cabelinho branco sempre arrumado debaixo de um lenço que ela nunca tirava. Lembro-me de seus vestidinhos, antes estampados e depois quando passou a usá-los de uma cor só.

Não tenho como esquecer de suas atuações como advogada de defesa, sempre intercedendo junto a minha mãe. Quando estava prestes a levar umas chineladas, após alguma travessura, ela mostrava que a palavra era melhor que a surra.

Sabia sempre o chazinho certo, para curar as enfermidades típicas de minha pouca idade. De folha de hortelã, até umas misturas horríveis que eu só bebia depois de muitos protestos.

Cozinhava como poucos. Tinha certa predileção por doces e compotas de todos os tipos, e dos mais variados sabores. Usava uma técnica especial, que a fazia gastar semanas preparando alguns e somente alguns minutos em outros. O de casca de laranja, levava um tempão e seu doce de leite incrivelmente gostoso, era feito em pouquíssimo tempo.

Lembro-me de jeito dela piolhos, que na maioria das vezes não passava de desculpas para que pudéssemos deitar em seu colo, pois com aqueles dedos compridos tateava nossa cabeça em busca do parasita de um jeito tão carinhoso que coçávamos a cabeça de mentira na frnte dela, só para sermos pegos na catação mais carinhosa que já existiu.

Foi por causa dela que senti meu primeiro ciúme, pois tinha que dividi-la com tantas outras crianças, eram tantos irmãos, tantos primos... Nunca vi uma única pessoa possuir tantos afilhados. Lá em casa, batizou de verdade mesmo só um, mas todos os outros a chamavam de madrinha. Era uma disputa acirrada para ver perto de quem ela ia ficar, na mão de quem ela ia pegar.

Adorava contar histórias na hora de dormir. Eram mágicas e faziam a cama enorme ficar pequena, pois todos, até os adultos queriam deitar em seu canto para ouvi-lá.

Através dela conheci muitos personagens, muitas histórias. Foi ela quem me apresentou um tal de Pedro Malazartes. Uma pessoa de caráter duvidoso, marcado por seu ardil, pela sua astúcia, pois sempre levava vantagem onde quer que andasse. Suas peripécias nos faziam ter dor de barriga de tanto rir.

Foi através dela que conheci Joãozinho e Maria, duas crianças que se perdem na mata e encontram uma casa feita de doces, cujo interior abrigava uma bruxa malvada. Uma versão que nunca encontrei em nenhum livro até hoje. Uma versão bem católica, pois nela tinha até uma aparição de Nossa Senhora. Poucas vezes ouvi o final dessa história, pois era uma das mais longas que ela contava, e eu sempre adormecia antes da Maria se casar com um fazendeiro e do Joãozinho derrotar a serpente que ia devorar a princesa. O final só conheci depois de mocinha, quando conseguia vencer o sono e escutar até o final.

A minha primeira catequista pois ensinou-me a rezar, a pedir e a agradecer, a fazer o sinal da cruz com a mão certa, e a fechar os olhos para conversar com Deus. Ela tinha uma Bíblia com umas gravuras lindas, mesmo sem saber ler eu adorava folheá-la, sempre me contava histórias lindas sobre cada um dos desenhos. Era de capa dura e com escritos em alto relevo. Ficava muito bem guardada, só depois de lavar a mão eu podia segurá-la. A página que tinha uma representação linda do rosto de Jesus Cristo chegou a ficar suja de tanto eu alisar enquanto pedia que ela contasse como foi que ele nasceu, viveu e morreu.

Quando ela se foi eu tinha dez anos, não tive tempo para retribuir tudo o que ela me deu e me ensinou, nem de dizer que a amava. Eu e meus irmãos éramos crianças e pensávamos que ela duraria para sempre, que nunca íamos perdê-la. Mas sei que ela sabia, que seu tempo conosco era curto, pois fez questão de torná-lo para todos nós, inesquecível.

Era mocinha quando deixou a casa de seus pais e foi morar com a minha avó materna. Ajudou ela cuidar de todos os seus filhos, e depois de todos os seus netos.

Deixou pouquíssimas fotos. A que minha família herdou é uma foto emoldurada, que foi presente de algum dos vários afilhados. Me lembro de ouvi-la dizer que tinha ficado horrível, pois o engraçadinho que a clicou desprevenida e descalça, tinha prometido que não ia deixar os pés aparecerem. Ele a pegou de mão na cintura, de vestidinho estampado, lencinho na cabeça e de pés no chãos.

A Deus agradeço o privilégio de tê-la conhecido e com ela ter convivido, por pouco tempo, mas tive.

À madrinha Néia, deixo meu agradecimento e minha saudade.

Meire Boni
Enviado por Meire Boni em 16/12/2011
Reeditado em 17/12/2011
Código do texto: T3392624
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.