Porco zio...

Uma homenagem póstuma a Paulo Czerniaski, O Blasfemador

Foi a primeira vez que cheguei na casa do nono Paulo e o vi o portão cadeado. Não era praxe daquele velho sexagenário trancar sua chacrinha lá na Linha Gaúcha. Sempre gostou de visitas, e sempre recepcionou tanto os íntimos como os desconhecidos de forma bastante simpática: soltando um tradicional porco zio (e outras blasfêmias possíveis para se adjetivar uma pessoa), ato que lhe era mais uma demonstração de amizade que de antipatia. Quem dera tivesse o nono vivido em outras épocas seria conhecido por Paulo, O Blasfemador. Inloquiçado, caquedo, imundiçia, djânho, e outros adjetivos que a moral não me permite falar, eram constantes em seu vocabulário.

Ele viveu de 1942 até exata uma semana atrás, quando um enfarte pegou de surpresa o velho Paulo, que pelas condições sinalizava mais várias luas de vida. E que “porco zio” é a morte, diria ele; ainda mais se ela chega logo no início da manhã, quando ainda se está na primeira cuia de chimarrão e se tem um dia todo planejado. A morte é uma baita sacanagem: você planta o feijão, mas não pode capinar e nem colhê-lo, alimenta diariamente os leitões, mas não irá carnear eles, não poderá tragar o paiêro recém feito e nem verá a classificação final do Colorado no Brasileirão. E a lenha rachada na frente da casa? Quem irá recolher se ameaçar chuva? Ela, a morte, deixa pendências à vida.

À parte dessa filosofia de 1,99 sobre o além, o velho Paulo é o que chamaria de "vivo ainda", porque algumas pessoas só morrem fisicamente. Gaúcho descendente duma linhagem meio polonesa, meio russa, sua vida não diferia em muito da de outros de sua época. Aventurou-se no sertão paranaense quando aqui eram fartas as araucárias e escassas as tecnologias. Mas a vida de muito trabalho e poucas posses não lhe privou de alguns prazeres boêmios, pois, como bom violeiro que era, convite para churrascadas e festas em bodegas não faltava. Casou cedo, segundo ele “por que nossa raça (dos Czerniaski) tava em extinção”, e se tornou o patriarca de uma casta de 13 filhos e 24 netos.

Adepto do eucentrismo, fazia questão de exaltar as qualidades dos frutos de seu trabalho. Suas mandiocas eram as mais viçosas, seus cachorros os mais bravos, sua chácara a mais cuidada e seus leitões (um batizado de Chico Bento) de melhor qualidade que os dos vizinhos.

Era ele um dos raros tipos que ainda habitam a Terra, desses que tinha a autenticidade que falta às pessoas de hoje. Em nada se assemelhava àquela imagem idealizada de um avô numa cadeira de balanço na sacada de casa brincando com os netos. O velho Paulo era meu parceiro de chimarrão, exímio contador de causo, conselheiro amoroso e dupla no truco. Xucro ao extremo, cavalo batizado. Achava graça nesse negócio de vasectomia, carregava a Carta Celeste num bolso, as palhas e o fumo n’outro, dormia escutando a Guaíba no rádio-relógio e me permitia vinho e salame à vontê. Fiquei órfão das conversas em roda do fogão à lenha, onde recomendava: “nunca pechinche com mulher da vida”. Saudades desse sábio sem faculdade, dono de uma voz alta, vida simples e um peculiar jeito de medir mulheres. Tudo isso virou só nostalgia.

Certo estou que, em virtude de seus vícios se equilibrarem ás virtudes, antes de ir ao céu ele penou no Purgatório. Mas na Terra, mais que uma faquinha de picar fumo, uma touca do Che Guevara, um baralho de truco engordurado e uma bíblia em russo, o velho Paulo deixou de herança seu exemplo, legado no sangue e na memória.

PS: Nono, lembra aquela vez que o gato sumiu e só apareceu uns três dias depois com um fio de arame enroscado nas guanxuma? Pois é, não foi o Dudu. Eu e os piá é que enrolemo uma bombinha nele. Mas mesmo assim, não deixe de interçeder por nós aí junto do São Jorge, que a coisa aqui em baixo tá preta. Porco dio, amém!