LEMBRANÇAS
LEMBRANÇAS
Pela manhã o céu estava igual ao daquele dia, mas tudo havia mudado.
Você não estava mais aqui, não pude falar-lhe tudo que gostaria, tudo que precisava, tudo que você merecia.
Coloquei a água no fogo pra fazer o café e lá estavam elas, as lembranças:
Lembrei-me de como você gostava de um cafezinho, de pão de casa com manteiga, de coxinha, da casa limpinha.
Liguei o rádio e daí foi covardia: A rádio tocava uma das músicas que você gostava, dá Eliana de Lima: “... foi sem querer que derramei toda emoção undererê...” não pude continuar só com as lembranças elas me machucavam muito, mudei a rádio e novamente elas voltaram, agora com Bruno e Marrone: “Desce uma geladinha que hoje eu vou perder a linha vou beber até amanhecer, meu amor me deu um fora, me xingou, mandou embora e diz que não quer mais me ver...” Lembrei de quando você ia ao Bailão do Girley, e em meio às lágrimas comecei a rir, pois nesse bailão você gostava de ir, pois era a mais bonita do lugar, dizia que todas as outras eram banguelas e se juntasse todas talvez não tivesse um sorriso completo, os homens também não eram bonitos, mas você ia lá para ser admirada, vista, invejada e lá isso acontecia de fato. Pensei nas nossas conversas, em como estávamos nos relacionando bem, em como estava feliz com a nova gravidez, quando me trouxe o CD com o ultra-som da Lara.
Passei o café e por mais cheiroso que ele fosse não aguçou meu olfato, e por mais quente que estivesse não aqueceu minha boca, faltava você.
Percebi que as coisas perderam grande parte do sentido, percebi que tínhamos assuntos inacabados, que não falaria com mais ninguém, que além da ligação sanguínea tínhamos uma ligação de coração. Lembro-me que vinha à pé lá do sítio até em casa e me ajudava, quando a Bruna nasceu foi um braço forte ao meu lado e quando me pedia eu tentava resolver seus impasses com a Júlia.
Sempre gostei das manhãs de inverno, quando há sol e uma brisa leve te obriga a usar uma blusa mais quentinha, lembro-me do meu pai, era a estação preferida dele, sentava-se à sua poltrona verde na sala, tomava seu café, ascendia seu cigarro, assoviava uma música, acariciava o gato, lia o jornal, depois ligava seu radinho de orelha e ouvia ao jogo. Gostava de ouvir ao Gil Gomes, Afanásio Jazade, Zé Bétio, Eli Correia, Osmar Santos... Ta tudo aqui, não esqueço. Dizem que é na cabeça que ficam as lembranças, mas as minhas tenho certeza de que ficam no coração.
Quando perdi minha mãe era muito nova e minhas lembranças são falhas, mas lembro-me de uma música: “... Sorria meu bem, sorria meu bem você deve sorrir que outro dia será bem melhor... Chorar, pra que, chorar...” Lembro-me de seus cabelos longos, de seu olhar terno e firme e de vê-la no necrotério do hospital, lembrei-me também, detesto hospital!
Toda vez que vou ver alguém no hospital, é a última vez. A palavra última é horrível, de todas as palavras, em todos os dicionários, em todas as línguas esta é a pior, a que me aterroriza profundamente, talvez porque saiba o que seja ver uma pessoa pela última vez, e o que é sentir sua falta, infelizmente meus sentidos para isso são tão aguçados que me lembro do cheiro do corredor do hospital, da claridade mínima, do caminho confuso que fazemos para chegar ao pior lugar de todos, onde todas as esperanças se acabam: No necrotério, a única coisa que nos impulsiona até lá é o fio de esperança de que não seja a pessoa, de que ao chegar lá ela acordará, como de um pesadelo e dirá: Que bom ver você, contudo mais de dois segundos nesse lugar me dizem que agora começa o pesadelo, que a esperança acabou e que a horrível última vez se aproxima.
Lembro-me do meu tio Ivo que me chamava de Mago margarida, do meu tio Moacyr e de suas manias, do meu vô e de seu sorriso e como estava triste no enterro do meu pai, lembro-me da tia Dinha, de Jaú, de seu quintal que foi nosso reino de alegria por tantas vezes, do tio Hélio tocando o surdão gigante no desfile da escola de samba, do tio Ademar e seu bigodão sujo de manteiga que nos engordurava pelas manhãs...
Todas essas lembranças trago aqui em meu coração, todas essas pessoas queridas que tive que ver pela horrível última vez, todo vazio que ficou.
Lembro-me que sempre foi mais forte nesse sentido. Eu sou uma canceriana típica, choro por tudo e todos e você mantinha minha coragem, fazia ou falava algo engraçado para eu rir e por instantes me esquecia de todas últimas vezes, mas agora ta difícil, houve a nossa última vez e justamente a mais mole ficou, agora as lembranças são tantas: Músicas, cheiros, cores, sabores, palavras, roupas... Me pego conversando com você e me pergunto se não estou enlouquecendo, mas tudo me lembra você. Deus conserve minhas lembranças, pois agora é parte da minha realidade, da minha identidade. Me pergunto como deve ser triste ler um desses formulários preenchidos por mim: Mãe falecida, pai falecido, irmãos falecidos, sobrinha falecida, creio que evitarei passar por isso por muito tempo.
Lembro-me de quando morávamos em Itapuí: Eu, você, papai e todos nossos sonhos futuros, lembro-me do pé de abacate, que era uma marca registrada de nossas casas, todas elas tinham um, lá no sítio também, você manteve a tradição, vejo nós duas caminhando pela estradinha de terra, indo para o terreno, lá em Itapuí, levar o almoço para o tio Ivo, e de nossa volta pela estrada asfaltada (mais longa) conversando sobre como seria nossa vida, nunca pronunciávamos a palavra última, e nossas brincadeiras de espantar paquerinhas na praça, uma sempre zoava a outra e nossa viagem de fim de ano, pra matarmos as saudades agora são só lembranças.
07/04/2010