FELIZ ANIVERSÁRIO, IRMÃO

Para Wilson Luís

Ela era pequena, sequer tinha sete anos, quando ele chegou a casa. Não tem lembranças claras desse dia, mas, consegue lembrar-se de, algum tempo depois, estar a empurrar um carrinho que abrigava o bebê esperto, de imensos olhos cor de jabuticaba, com o sorriso encantador, o corpo rechonchudo como o são, ou deveriam ser, o corpo e o sorriso de todos os bebês.

Do dia em que ele completou um ano, resta a foto da família diante do bolo enorme, todo branco, mais semelhando um bolo de noiva do que o do aniversário de um garotinho a olhar para tudo sem entender nada do que estava acontecendo, ainda assim sentindo, em algum lugar misterioso da sua pequena alma, que ele devia o centro de tudo aquilo.

Aquele rapazinho não gostava nem um pouco de estudar e ela, quase sete anos mais velha, tentava despertar-lhe o gosto pela leitura, obrigando-o a ler, todos os dias, pelo menos uma página de algum livro do Monteiro Lobato, procedimento didático incorreto que o afastava cada vez mais dos livros.

Ele gostava mesmo era de “aprontar“, aliás, sempre em boa companhia, isto é, na companhia de todos os garotos da vizinhança. Apesar disso, nunca apanhou do pai nem da mãe, atitude deveras sábia da parte deles.

Os tempos de servir o Exército foram terríveis. Quando voltava para casa nos dias de folga, via-se em seus olhos a vontade de quebrar tudo em volta. Todos procuravam entender-lhe a raiva, o mau humor que se estendia por todos os muros da casa.

Apesar da diferença de quase sete anos entre eles, eram grandes amigos. Amavam as mesmas músicas, iam juntos ao cinema, conversavam horas e horas sobre os assuntos já existentes e sobre aqueles que eles próprios inventavam. Tinham amigos comuns, entre os quais o Omar, Omar de La Roca. Ela se recorda de que, os três juntos, chegaram a assistir mais de vinte vezes ao "Irmão Sol, Irmão Lua", filme a contar a história de São Francisco de Assis. As canções desse filme ainda repercutem, depois de décadas, na memória dela e na de Omar.

Quantas viagens nos tempos da faculdade! Tempos de USP,os amigos dela sendo também amigos dele. Acampamentos, noites de cantoria nas praias, namoricos, confidências. Todos tão jovens, o mundo lhes era horizonte aberto, em todos os sentidos que a imaginação fosse capaz de alcançar.

Ele mesmo estudou até o 3º colegial, em escola técnica, não quis fazer faculdade. Desenhista-projetista, pôs-se a demarcar o território de sua vida profissional enquanto ela já, há tempos, exercia o magistério. Embora um técnico, ele não se descuidava dos livros que há muito aprendera a amar. Culto, sabia de técnicas de fotografia, das teorias de Vilém Flusser, da música revolucionária de Gilberto Mendes, bem como da Odisséia de Homero. Ela, sua irmã, o acompanhava nesses voos mentais.

Certo dia, muitos anos depois, o pai deles se foi para o Outro Plano e a história familiar foi, aos poucos,tornando-se outra, cada vez mais estranha, estrangeira.

Hoje, em 09 de abril, neste dia de aniversário, do aniversário do seu único irmão, daquele garotinho que tinha os olhos cor de jabuticaba, ela tenta compreender como e por que causas foi ocorrendo a quebra dos elos, mas há uma dor que ainda não lhe permite clareza e ela quer alguma clareza efetiva, ela quer nem simulacros nem simulações, para lhe telefonar, para telefonar ao primeiro grande amigo de sua vida e lhe dizer, com naturalidade, com a naturalidade que foi sendo perdida ao longo dos anos: "Feliz aniversário. Feliz eternidade, meu irmão."

Na manhã de 09 de abril de 2011.