MARUJO E UMA LIÇÃO DE DESAPEGO MATERIAL

O episódio a seguir aconteceu no meu querido LEME... Bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro, onde morei por vários anos e lá deixei grandes amigos. Um dos personagens da estória é este que vos escreve. O outro, conhecido como *MARUJO, foi uma das folclóricas figuras que conheci pelas areias de Copacabana.

Marujo trabalhou um tempo como barraqueiro na praia do Leme. Quando perdeu o ponto, passou a ajudar outros barraqueiros, carregando cadeiras e barracas. Muito carismático, cumprimentava a todos e tratava os frequentadores da praia com gentileza e cortesia. Não fazia distinção se o cliente era rico ou pobre, “gringo” ou “brazuca”, do "morro" ou do "asfalto". Todos eram por ele bem tratados.

Bebia sua cervejinha - quando o lucro da praia era maior -, ou sua pinga - nos dias de praia magra - sempre pelos bares da Rua Gustavo Sampaio.

Como ex-marítimo (razão de seu apelido), sempre contava estórias do alto-mar, casos da estiva e boas piadas.

Estávamos no final de 1999, às vésperas do tão esperado ano 2000 e do reveillon do milênio. As festas e confraternizações de dezembro lotavam minha agenda... e esvaziavam meu bolso.

Era uma noite de quinta ou sexta-feira. Eu estava indo para a "night" bem arrumado: calça cinza, camisa preta de linho, sapato no brilho, gel no cabelo, barba feita e perfumado. Mas com uma única "onça" na carteira, que, diga-se de passagem, deveria durar literalmente até o século seguinte. Fiz o tradicional "esquenta" no bar DA-MOÇA e, no caminho da Avenida Prado Júnior, passei pelo bar CACHORRÃO para comprar uma bala extra forte - a única que disfarçaria meu bafo de cana.

O atendente, na ocasião por mim desconhecido, disse não ter troco para R$ 50,00, mas não disse o esperado "depois você me paga". O truque da nota grande para compra pequena, que normalmente acaba em fiado, não deu certo. Desolado, fui saindo do bar já pensando o pior: "com este bafo de cachaça, não pego nem as primas da P.J."

Foi então que aconteceu o inesperado. Uma figura sem camisa, com um bafo de pinga mais forte do que o meu, e todo sujo de areia, pega em meu braço e diz: "vai levar a bala sim!" e, com uma altivez peculiar, ordenou ao atendente: "Antônio, dá a bala 'pro garoto'... EU PAGO!".

O bar estava cheio e eu fiquei constrangido com a situação. Imaginem a cena: Eu de um lado, bem vestido, barba feita, perfumado e com uma nota de R$ 50,00 - sem querer pagar pela bala; e, do outro lado, uma figura sem camisa, suja de areia, mal-cheirosa e provavelmente sem R$ 0,50 no bolso - mas querendo pagar a bala por mim.

Tive vergonha de mim mesmo... e, ao pensar comigo, "... esse cara não deve ter dinheiro para uma pinga e quer me pagar uma bala?!", fiquei mais sem graça ainda. Então, disfarcei meu constrangimento e, agradecendo a atenção daquele que depois soube tratar-se do MARUJO, recusei a bala e tentei deixar o local.

Em vão! Marujo, com insistência, me segurou e disse: "Faço questão de pagar a bala! Por favor não faça desfeita", disse ele puxando de imediato algumas moedas e uma nota suja de R$ 1,00 do bolso. Diante deste gesto, me senti o mosquito, do cocô, do cavalo do bandido, mas não tive outra alternativa senão aceitar a bala. Então, agradeci a gentileza, deixando o salvador do meu mau-hálito com um honrado brilho no olhar... que reluziu ainda mais ao recusar o troco do atendente (vinte centavos) e deixá-lo como "caixinha" para os funcionários.

Depois deste episódio, passei a dar mais valor as pessoas simples, não julgar os outros pelas aparências e a valorizar mais as atitudes e gestos do que as posses e condições das pessoas.

Voltei a encontrar o Marujo umas duas ou três vezes e, felizmente, tive a oportunidade de retribuir-lhe a bala. Claro que ele não aceitou uma bala, os R$ 0,80 (oitenta centavos), ou outra forma de retribuição, senão algumas doses de pinga.

Entretanto, o gesto e a atitude dele jamais esquecerei.

Aquele R$ 1,00 com certeza era parte de sua diária... Um dinheiro ganho, honestamente, com o suor de quem trabalha pesado, subindo e descendo o morro com cadeiras e barracas, sujeitando-se a receber de acordo com o movimento da praia e atendendo - sempre com simpatia - os nem sempre simpáticos frequentadores da praia.

Algum tempo depois, recebi com tristeza a notícia de que Marujo tinha falecido. Não apurei as circunstâncias, mas disseram que ele foi atropelado tentando, embriagado, atravessar a Avenida Princesa Isabel.

Morreu na miséria, sem familiares para o velar ou amigos para chorarem sua partida. E foi enterrado como indigente....

Fica aqui esta singela homenagem ao Marujo! Certamente Deus lhe reservou algo muito melhor no céu, do que aquilo que os homens lhe ofereceram na terra.

P.S.: Recordei-me de uma campanha feita por uma emissora de TV - bem humorada, porém séria -, que buscava arrecadar recursos para o Retiro dos Artistas (abrigo para idosos em Jacarepaguá, Rio de Janeiro). Nesta campanha, quando procurados pelos idealizadores, algumas personalidades do meio artístico - todas conhecidas da grande mídia - RECUSARAM-SE a colaborar. Outras "encheram a boca" para dizer que contribuiram com R$ 200,00 (duzentos reais)... Ahhhh que saudades do Marujo !!!

*Nomes e locais fictícios.