Olhares do Brasil

Mais de 50 anos de Bossa Nova e o SAMBA DO AVIÃO, de TOM JOBIM continua a inspirar olhares

Rio de janeiro, cidade de universos contraditórios e fascinantes. Impossível não amar essa cidade com todas as suas belezas naturais: as águas cristalinas do imenso mar, o Cristo Redentor, o belo Jardim Botânico, o magnífico Arpoador, os cantos da bossa nova, do samba, as idéias poéticas, o lirismo, a morena que encanta com suas curvas e danças, os diversos compositores, artistas, músicos e os olhares estrangeiros que se deslumbram quando visitam o Rio.

O contraste está nos subúrbios e nas favelas, com presença marcante na cidade. Esse espaço é evocado através da música ou da própria imagem fotográfica que registra qualquer momento, situação, ou evento. É admissível estabelecer ligação entre o subjetivo e o objetivo em relação ao olhar.

Segundo Aurélio, olhar é fitar os olhos, atentar, mirar, observar contemplar, reparar, tomar conta, zelar por, exercer ou aplicar sentido de vista – ver-se mutuamente. Essa mediação provocada pelo olhar das pessoas em relação às riquezas naturais não passa despercebida. Num simples piscar de olhos é possível experimentar toda a grandeza de mares e de florestas. O imaginário compartilha dessa sensação, mesmo sem entender como esse espaço foi criado. Por que mãos? Quem teve a brilhante idéia de construí-la tão bela? Que arquitetura perfeita, que seduz os poetas, os amantes, os escritores e as demais pessoas comuns, mas também sensíveis.

Samba do avião, imagem poética e musical da

beleza e das personalidades do Rio de Janeiro

Tom Jobim, “alma carioca” autêntica, amante das letras e de notas harmônicas, reproduziu brilhantemente a imagem do Rio de Janeiro. Em seu imortal “Samba do avião”, ele narra um retorno à cidade: “Minha alma canta / Vejo o Rio de Janeiro / Estou morrendo de saudade / Rio teu mar praias sem fim / Rio você foi feito pra mim.” Tom sobre tons revelados com os versos do Rio, do Cristo Redentor, da morena que vai sambar. Rio de sol, de céu, de mar. Do Galeão, da Guanabara. De água brilhando e de aterrar. A relação do sujeito que contempla o objeto.

No Rio os mesmos olhares magicamente captam as imagens e as transformam em lembranças, em momentos contemplados, em histórias vividas, em saudades contidas, em memórias queridas. Eles percebem os morros, seus perigos, sua gente descontente e desprotegida. Registram as dificuldades de sobrevivência de um povo alegre, descontraído, articulado na fala e na maneira de viver.

Para essa metrópole que convive diariamente com situações difíceis, nem mesmo a violência e a falta de segurança que são divulgadas pelas mídias impedem que as pessoas destaquem a beleza e os encantos de viver entre as curvas das montanhas e a imensidão do mar.

O fotógrafo Felix Richter, morador do bairro do Leblon, manifesta o seu olhar: “Existem dois Rio de Janeiro. Um é a cidade grande e caótica. O outro é o Rio calmo e sereno, quase silencioso”. No Rio de Janeiro caótico Richter se incomoda com o trânsito e a poluição. No Rio de Janeiro sereno, caminha sozinho à noite ouvindo o barulho do mar sem encontrar outra pessoa. Certa vez fotografou o Rio de helicóptero, estava chovendo, o vôo partiu do Rio de Janeiro cinza, engarrafado e impessoal. “Em poucos minutos de vôo cruzei a linha das nuvens e contemplei o Cristo Redentor sozinho, iluminado de laranja. Representava o Rio de Janeiro sereno”, ilustra Richter.

No Rio é possível dialogar com a arquitetura, com a antropologia, com as artes, com a linguagem e com diversos olhares. O paulistano e administrador de empresas Claudio de Lima, morador do bairro do Ipiranga comenta que, “o Tom é um gênio, um ser de muita sensibilidade, nosso maior músico do século XX. Uma alma romântica como a dele, não teria olhos diferentes para a cidade onde ele viveu suas maiores criações e suas mais doces paixões”.

Ainda que existam contrastes conflitantes, poucas cidades no mundo foram tão cantadas em prosa e verso como o Rio. Sua geografia faz do curto espaço entre a montanha e o mar, a pintura que muitos acreditam ter sido criada por Deus. Apesar de todos os percalços, “o Rio (que é tão mulher) continua apaixonando a todos os que o visitam”, acredita Arnaldo Nogueira Jr, idealizador do Projeto Releituras – site que publica textos de novos e antigos escritores. Paulista de Franca, Nogueira vive no Rio há quase 20 anos. Cita “Canto do Rio em Sol”, poema do mineiro Carlos Drummond de Andrade, poeta sensível que descreveu o seu amor pelo Rio de Janeiro assim: “Guanabara, seio, braço de a-mar: em teu nome, a sigla rara dos tempos do verbo mar”.

Outra música bastante cantada pelos cariocas é o samba “Copacabana”. Com letra de Alberto Ribeiro e música de João de Barro, o Braguinha, foi gravado originalmente em 1946, na voz inconfundível de Dick Farney. Teve, pelo menos, mais de 20 regravações. Até Sarah Vaughan cantou a ‘princesinha do mar’.

O compositor baiano Dorival Caymmi é outro exemplo de paixão à primeira vista pela Cidade Maravilhosa. Na década de 50 compôs “Sábado em Copacabana”, originalmente gravada em 1951 por Lúcio Alves. Caymmi teve como parceiro nesta canção uma das figuras mais conhecidas do bairro e da alta sociedade carioca daquela época: Carlos Guinle.

Copacabana que a jornalista, e atualmente assessora de comunicação do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, Liliana de La Torre eterniza: “O Rio é obra divina, o contraste do verde das montanhas com azul do céu e prédios em encostas é uma verdadeira pintura”. E ela ressalta, “mesmo sabendo que temos como outras metrópoles do mundo questões sociais sérias que levam à violência, ainda me orgulho muito de morar nesta cidade”. Liliana se encanta com a cidade. “Além do mais, sou de Copacabana, a praia mais bonita do mundo em minha opinião. Andar em seu calçadão diariamente é um presente e uma homenagem à vida”.

Imagens do Rio bonito também são reproduzidas pela cultura simbólica do carnaval carioca. Entra nos lares, exibindo alegorias e performances de passistas. Num espetáculo contagiante atrai turistas de vários cantos do mundo. Olhares se comunicam e se entrelaçam como numa dança. Festejam e sentem a experiência de representar o carnaval. Na definição da administradora de empresas brasileira Renata Kuehl, que vive em Patterson, Nova York, há 8 anos, “o Rio se traduz, sobretudo, em saudade: visão do Cristo Redentor olhando sobre a cidade e a alegria de viver incondicional que só o povo brasileiro tem”.

A própria ‘fotografia’ do Rio é capaz de tocar, de falar, de situar um espaço, uma paisagem, um corpo singular ou concreto. Olhar que dá acesso ao conhecimento geográfico do Rio. Este sentido tão magno que permite ao ser humano variações e possibilidades de evocar o belo, o feio e o intermediário. Olhar que atinge o inconsciente e o consciente. Olhar que desperta afeto, que independe de bagagem cultural ou de saber técnico. Como o olhar do menino Daniel do Nascimento, paulistano de 10 anos: “Rio de Janeiro é menor que São Paulo, no Rio tem uma praia imensa, o Rio tem a beleza e a pureza, o Rio é uma praia maravilhosa que a gente gosta”.

A cidade “patchwork”

Para a pesquisadora da música popular brasileira Simone Luci Pereira,

a cidade do Rio de Janeiro é construída prioritariamente sobre imagens

Há 13 anos a doutora em antropologia pela PUC/SP Simone Luci Pereira dedica-se ao estudo da música popular, com ênfase em seus aspectos históricos e sócio-culturais. Seu doutorado foi sobre a memória dos ouvintes da Bossa Nova. Simone tem participado de vários congressos no Brasil e no exterior, nas áreas de Antropologia, Música e Comunicação. Atualmente é professora na FECAP (Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado) e Pesquisadora do MuSimid (Núcleo de Estudos em Música e Mídia).

Para a pesquisadora a cidade do Rio de Janeiro é realmente construída prioritariamente sobre imagens. Em sua análise, Simone interpretou um Rio visto por alguém, que o conhecia bastante, mas que, não pertence àquele lugar, mas que reconhece ali configurações, questões, movimentos, ritmos, sociabilidades próprias, jeitos de ser, de viver e de ler a cidade.

Olhar Independente – Como você analisou o Rio de Janeiro sem viver na cidade?

Simone Luci Pereira – Analisei o Rio como uma paisagem sonora que sugere felicidade e realização, reforçando a poesia que narra à volta à bela cidade e sua paisagem visual. O Rio dos cartões postais, do cinema, da publicidade e das telenovelas. Cidade construída pela memória ou por narrativas alheias (análise de alguém que vive na cidade de São Paulo).

Olhar Independente – Como os habitantes do Rio revelam a memória da cidade?

Simone Luci Pereira – Imagens da cidade se misturam às imagens projetadas pelas memórias das pessoas. Há um silêncio imensamente revelador presente nestas memórias, apontando para o fato de que, embora a memória histórica sobre a cidade tenha escolhido elementos como do "cartão-postal", para seus habitantes, eles se mostram fundantes, mas numa outra ordem, como paisagem interioriza dispensando referências.

Olhar Independente – Como você traduziria o Rio como imagem-visual?

Simone Luci Pereira – Vejo o Rio a partir de um olhar e de uma escuta atenta, o que se pode perceber é um Rio polifônico. Uma cidade para ser vista e ouvida, dona de nuanças e timbres próprios que se deslocam num tráfego incessante de significados, experiências e leituras, conformando uma "cidade patchwork".

*A sessão Olhares do Brasil, foi registrada no – Projeto Experimental – Revista Olhar Independente, em junho de 2008. O texto que não perde atualidade é uma carinhosa homenagem a tamanha beleza do brasileiro – Rio de Janeiro!

Cássia Nascimento
Enviado por Cássia Nascimento em 10/02/2011
Reeditado em 10/02/2011
Código do texto: T2783702