Um (vício chamado) Hank

Outro dia, girava a estante dos livros de bolso, numa livraria que sempre visito quando quero dar alguma utilidade às pequenas gavetas de tempo que esporadicamente se abrem ao meu redor, e, depois de escolher, a dedo, um presente de aniversário para uma amiga (livro, sempre que possível, afinal, nós, escritores, temos a obrigação de apoiar a categoria, e, além disso, gastos com literatura sempre me parecem o melhor destino que posso dar para qualquer punhado de dinheiro meu), eis que me deparei com ele: um Bukowski.

Ah, o famoso Charles Bukowski...

Sempre quis conhecê-lo mais profundamente e aquele livro, de capa verde e nome pornográfico*, solitário e perdido, ao fundo de uma fileira de semelhantes tão desiguais – em cor, tamanho e conteúdo – mostrava-se deveras convidativo! Um verdadeiro achado, perfeito ao meu gosto – e orçamento apertado!

Pois bem, comprei-o. Agora, era meu, só meu, aquele velho safado! Faria com ele o que bem quisesse. E o desejo era imenso, era um só: devorá-lo! E foi o que o fiz, dando as primeiras “mordidas” já no caminho para casa. Nacos e nacos de Bukowski escorrendo para dentro do meu ser... Completando lacunas que eu nem sequer sabia ter. Daquele momento em diante, apossei-me do velho Hank (apelido, disponível só para os mais íntimos) com tamanha voracidade (e veracidade) que senti como se pertencêssemos a uma mesma estirpe de gente; não a de escritores consagrados (e mortos), claro que não – pretensões exacerbadas me tapam de nojo! Mas, sim, a de “gente”, no sentido mais real que o termo comporta:

Gente fodida que nada contra a maré, que vive atolada em dúvidas, em dívidas, e nada, e se afoga, e recupera o fôlego enquanto perde o juízo das mais variadas formas. Gente que se diz ateia, que se julga maluca, quando é, na verdade, a mais comum das “criaturas de meu deus”, e que se diz comum quando, à beira do precipício, deixa propositalmente deslizar entre os dedos o fio da sanidade. Gente que se contradiz, e se repete, repete, repete... Gente ranzinza, um tanto hipócrita e demagoga; escritores prepotentes (olha a redundância) que apontam sua “caneta-dedo” para a cara de todo mundo – incluindo a sua própria. Gente que bebe, que trepa e que, em ambos, comete excessos. Gentezinha bem à toa, essa nossa!

E em meio aos trocadilhos meus, sinto uma ponta de decepção que me chega sob a forma de uma recriminação imaginária vinda do velho Buk... “sorte a dela em ter belas pernas. O rabo, um espetáculo! Pena que faz versos com rima, a coitada”. Vez ou outra me pego a olhar as pernas: nada de extraordinárias, admito. Mas quando olho a cozinha, um alívio: uma beleza de bagunça! Sei que não o desaponto:

''Me mostrem um sujeito que mora sozinho e está sempre com a cozinha suja, que eu, em 5 entre 9 casos, provarei que o sujeito é fora de série.''

-Charles Bukowski, em 27.6.67,depois da 19°garrafa de cerveja.

''Me mostrem um sujeito que mora sozinho e está sempre com a cozinha limpa, que eu, em 8 entre 9 casos, provarei que o sujeito tem abomináveis qualidades espirituais.''

-Charles Bukowski, em 27.6.67, depois da 20°garrafa de cerveja.

[do conto “Sensível demais”]

“É... Hank, na certa, ficaria comigo satisfeito!” – pensa ela, em 3ª pessoa, ainda por cima... Sinal da pseudoloucura eminente. Ri, apesar de tudo, escreve, apesar da rima. E segue feliz, a coitada do Hank, nutrindo o seu vício, tecendo a sua sina.

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*NOTA: O livro – de capa verde e nome pornográfico – que iniciou a autora desta crônica ao vício chamado Hank [Bukowski], chama-se “Fabulário geral do delírio cotidiano: ereções, ejaculações e exibicionismos – Parte II” (Coleção L&PM Pocket).