Tributo ao mano Everaldo
É coisa simples a morte. Dói, depois sossega. Quando sossegou – lembro-me que a manhã raiava em minha casa – já te havia eu recuperado totalmente; tal como te encontras agora, vestido de mim. (Vinicius de Moraes).
Era quase primavera.
Aqui no Cerrado ainda seco, os ipês exibiam suas flores roxas e amarelas. Em meio ao inverno que se despedia, uma vida sinalizava também a sua próxima partida. Foram escassos trinta e poucos dias de sobrevida após o diagnóstico. Sentença conhecida numa sexta-feira 13 de agosto de 2010.
Everaldo, não teve qualquer chance contra o inimigo pertinaz que o destruía silenciosamente. Lutou paciente resignado até a partida, em 19 de setembro. Faltou pouco, apenas dois meses, para realizar um sonho acalentado nos últimos cinco anos: conduzir Larissa, sua filha mais nova, à cerimônia de colação de grau em Medicina. Uma alegria que já tivera com Andréa (que lhe deu dois netos), Alessandro e Ana Carolina, filhos do seu primeiro casamento.
Ao saber da gravidade da doença, insistiu para que fosse mantida a participação da família nos atos solenes e festivos da formatura, ainda que ele não estivesse mais entre nós. E pediu-me que o substituísse em todas as formalidades do evento. Uma honra que eu preferiria não ter, como disse a ele ainda hospitalizado. E certamente não a teria se Deus ouvisse as minhas preces por sua cura.
Desafortunadamente não mereci essa graça. Fiquei desapontado, mais que isso traumatizado. Afinal há menos de dois anos perdi Almerindo, o irmão mais novo, em circunstâncias idênticas. Mas quem sou eu para contrariar os desígnios do Senhor? Mergulhei-me em Jó buscando resignação...
Everaldo era o mano mais velho. Foi uma referência para a família, especialmente para mim. Exerceu uma influência muito grande na minha formação cultural e política. Foi por seu intermédio que li o filósofo ítalo-argentino José Ingenieros (As forças morais, O homem medíocre e A Caminho de uma moral sem dogmas), Gondim da Fonseca (Que sabe você sobre o Petróleo, a bíblia do nacionalismo de então) e Jorge Amado (O Cavaleiro da Esperança, biografia de Luiz Carlos Prestes). Os livros de Vargas Villa (Íbis e A conquista de Bizâncio), eu pegava escondido de sua estante. Ele dizia não ser uma leitura para adolescente.
Quanto à minha inclinação poética, o mano não exerceu qualquer influência. Na verdade, ele não era lá chegado à poesia, como me disse certa vez. Quem sabe, por força de um viés nietzschiano. Zaratustra sentenciou que os poetas mentem demais e que são “mares sem profundidade”. Discordo disso com veemência.
O Movimento Nacionalista que empolgou os jovens antes da ditadura de 1964, na esteira da campanha de “O petróleo é nosso” teve em Everaldo um dos membros atuantes em Cruz das Almas, na Bahia. Marcou também o início de minha militância, também espelhada nele que revisou o meu primeiro artigo para um jornal político, O Nacionalista.
Mas essa influência não parou por ai. No esporte, como o melhor goleiro do seu tempo em nossa cidade, defendendo o clube dos Artistas, inspirou-me a seguir suas pegadas como jogador. Mas foi uma meteórica e fracassada tentativa.
Sempre torcemos para o mesmo time no futebol profissional: Bahia e o Fluminense do Rio. Ainda no seu leito agônico foi capaz de fazer com o polegar um sinal de “positivo” quando lhe foi dito que os nossos tricolores estavam se dando bem na rodada daquele fim-de-semana do Campeonato Nacional.
Como engenheiro agrônomo, Everaldo especializou-se em Estatística Experimental. Ingressou por concurso público no Instituto de Pesquisa e Experimentação Agropecuárias do Leste – IPEAL, tendo exercido a chefia da Seção de Estatística Experimental e a vice-diretoria. Com o advento da Embrapa, trabalhou no Departamento Técnico Científico dessa empresa, em Brasília. Foi também professor visitante da Escola de Agronomia da Universidade Federal da Bahia.
Depois de aposentado pela Embrapa, Everaldo dedicou-se a atividades educacionais voltadas para a juventude. Ajudou a criar e foi o primeiro diretor do Centro Educacional Cruzalmense, à época o melhor colégio do município, superando em qualidade os concorrentes particulares. Quando faleceu era diretor do Colégio Cruz das Almas. A sua competência como gestor educacional fez crescer consideravelmente a procura de alunos por aquele estabelecimento de ensino.
Everaldo foi Provedor da Santa Casa de Misericórdia, mantenedora do Hospital Nossa Senhora do Bom Sucesso, no período de 2007 a 2008. Nessa função confirmou a sua competência como gestor e a sensibilidade social que lhe era nata. Entre as muitas ações de melhoria da qualidade do atendimento aos mais pobres, construiu quatro apartamentos dedicados a pacientes do SUS, idosos e aqueles em estágio terminal. Queria assim propiciar maior conforto a esses pacientes junto aos familiares nos seus momentos finais. Não sei se existe algo semelhante em outro lugar do Brasil. Para verificar se os mais carentes estavam sendo bem tratados, não raro, durante a noite, fazia visitas de surpresa às enfermarias. Em reconhecimento à dedicação e à qualidade do seu trabalho, a irmandade da Santa Casa o homenageou, recentemente, dando o nome de Everaldo Mascarenhas Rodrigues a uma das salas do hospital.
Mais que bens materiais, Everaldo acumulou virtudes ao longo da vida. Honestidade, solidariedade para com os semelhantes e o amor à família são exemplos do seu legado maior. Partiu com dignidade, resistindo ao sofrimento pacientemente, como que abraçando o sacrifício sem desespero e sem queixa. E olha que não era um homem de profissão de fé religiosa. Mas, quem sabe, a compaixão que lhe é inerente o coloque bem mais próximo de Cristo do que muitos que se arvoram de seguidores do Mestre, mas passam longe da prática do Seu Evangelho...
Hoje a chuva voltou ao Cerrado de Brasília. Contemplo de minha janela o gramado verde salpicado de flores. É a retomada de novo ciclo sazonal trazendo alegria e esperança. Do mesmo modo, Everaldo retorna à Casa do Pai para continuar a sua obra benfazeja, agora liberto de sofrimentos terrenos.
Até sempre, irmão!
É coisa simples a morte. Dói, depois sossega. Quando sossegou – lembro-me que a manhã raiava em minha casa – já te havia eu recuperado totalmente; tal como te encontras agora, vestido de mim. (Vinicius de Moraes).
Era quase primavera.
Aqui no Cerrado ainda seco, os ipês exibiam suas flores roxas e amarelas. Em meio ao inverno que se despedia, uma vida sinalizava também a sua próxima partida. Foram escassos trinta e poucos dias de sobrevida após o diagnóstico. Sentença conhecida numa sexta-feira 13 de agosto de 2010.
Everaldo, não teve qualquer chance contra o inimigo pertinaz que o destruía silenciosamente. Lutou paciente resignado até a partida, em 19 de setembro. Faltou pouco, apenas dois meses, para realizar um sonho acalentado nos últimos cinco anos: conduzir Larissa, sua filha mais nova, à cerimônia de colação de grau em Medicina. Uma alegria que já tivera com Andréa (que lhe deu dois netos), Alessandro e Ana Carolina, filhos do seu primeiro casamento.
Ao saber da gravidade da doença, insistiu para que fosse mantida a participação da família nos atos solenes e festivos da formatura, ainda que ele não estivesse mais entre nós. E pediu-me que o substituísse em todas as formalidades do evento. Uma honra que eu preferiria não ter, como disse a ele ainda hospitalizado. E certamente não a teria se Deus ouvisse as minhas preces por sua cura.
Desafortunadamente não mereci essa graça. Fiquei desapontado, mais que isso traumatizado. Afinal há menos de dois anos perdi Almerindo, o irmão mais novo, em circunstâncias idênticas. Mas quem sou eu para contrariar os desígnios do Senhor? Mergulhei-me em Jó buscando resignação...
Everaldo era o mano mais velho. Foi uma referência para a família, especialmente para mim. Exerceu uma influência muito grande na minha formação cultural e política. Foi por seu intermédio que li o filósofo ítalo-argentino José Ingenieros (As forças morais, O homem medíocre e A Caminho de uma moral sem dogmas), Gondim da Fonseca (Que sabe você sobre o Petróleo, a bíblia do nacionalismo de então) e Jorge Amado (O Cavaleiro da Esperança, biografia de Luiz Carlos Prestes). Os livros de Vargas Villa (Íbis e A conquista de Bizâncio), eu pegava escondido de sua estante. Ele dizia não ser uma leitura para adolescente.
Quanto à minha inclinação poética, o mano não exerceu qualquer influência. Na verdade, ele não era lá chegado à poesia, como me disse certa vez. Quem sabe, por força de um viés nietzschiano. Zaratustra sentenciou que os poetas mentem demais e que são “mares sem profundidade”. Discordo disso com veemência.
O Movimento Nacionalista que empolgou os jovens antes da ditadura de 1964, na esteira da campanha de “O petróleo é nosso” teve em Everaldo um dos membros atuantes em Cruz das Almas, na Bahia. Marcou também o início de minha militância, também espelhada nele que revisou o meu primeiro artigo para um jornal político, O Nacionalista.
Mas essa influência não parou por ai. No esporte, como o melhor goleiro do seu tempo em nossa cidade, defendendo o clube dos Artistas, inspirou-me a seguir suas pegadas como jogador. Mas foi uma meteórica e fracassada tentativa.
Sempre torcemos para o mesmo time no futebol profissional: Bahia e o Fluminense do Rio. Ainda no seu leito agônico foi capaz de fazer com o polegar um sinal de “positivo” quando lhe foi dito que os nossos tricolores estavam se dando bem na rodada daquele fim-de-semana do Campeonato Nacional.
Como engenheiro agrônomo, Everaldo especializou-se em Estatística Experimental. Ingressou por concurso público no Instituto de Pesquisa e Experimentação Agropecuárias do Leste – IPEAL, tendo exercido a chefia da Seção de Estatística Experimental e a vice-diretoria. Com o advento da Embrapa, trabalhou no Departamento Técnico Científico dessa empresa, em Brasília. Foi também professor visitante da Escola de Agronomia da Universidade Federal da Bahia.
Depois de aposentado pela Embrapa, Everaldo dedicou-se a atividades educacionais voltadas para a juventude. Ajudou a criar e foi o primeiro diretor do Centro Educacional Cruzalmense, à época o melhor colégio do município, superando em qualidade os concorrentes particulares. Quando faleceu era diretor do Colégio Cruz das Almas. A sua competência como gestor educacional fez crescer consideravelmente a procura de alunos por aquele estabelecimento de ensino.
Everaldo foi Provedor da Santa Casa de Misericórdia, mantenedora do Hospital Nossa Senhora do Bom Sucesso, no período de 2007 a 2008. Nessa função confirmou a sua competência como gestor e a sensibilidade social que lhe era nata. Entre as muitas ações de melhoria da qualidade do atendimento aos mais pobres, construiu quatro apartamentos dedicados a pacientes do SUS, idosos e aqueles em estágio terminal. Queria assim propiciar maior conforto a esses pacientes junto aos familiares nos seus momentos finais. Não sei se existe algo semelhante em outro lugar do Brasil. Para verificar se os mais carentes estavam sendo bem tratados, não raro, durante a noite, fazia visitas de surpresa às enfermarias. Em reconhecimento à dedicação e à qualidade do seu trabalho, a irmandade da Santa Casa o homenageou, recentemente, dando o nome de Everaldo Mascarenhas Rodrigues a uma das salas do hospital.
Mais que bens materiais, Everaldo acumulou virtudes ao longo da vida. Honestidade, solidariedade para com os semelhantes e o amor à família são exemplos do seu legado maior. Partiu com dignidade, resistindo ao sofrimento pacientemente, como que abraçando o sacrifício sem desespero e sem queixa. E olha que não era um homem de profissão de fé religiosa. Mas, quem sabe, a compaixão que lhe é inerente o coloque bem mais próximo de Cristo do que muitos que se arvoram de seguidores do Mestre, mas passam longe da prática do Seu Evangelho...
Hoje a chuva voltou ao Cerrado de Brasília. Contemplo de minha janela o gramado verde salpicado de flores. É a retomada de novo ciclo sazonal trazendo alegria e esperança. Do mesmo modo, Everaldo retorna à Casa do Pai para continuar a sua obra benfazeja, agora liberto de sofrimentos terrenos.
Até sempre, irmão!