A Daniel Bicalho - 52 -
Tão bom quanto guaraná no filtro
Durante a última bienal do livro de São Paulo assisti a uma reportagam feita com crianças que frequentavam os corredores da exposição.A todas elas era perguntado se gostavam de ler ou não e por quê.As respostas,acompanhadas das expressões faciais puras e sinceras das crianças, eram invariavelmente sorrisos e olhos brilhantes para as que gostavam de ler e bocas retorcidas e caretas para as crianças que não gostavam de ler.Adjetivos como delicioso,divertido e gostoso foram usados pelos fãs dos livros e chato,cansativo e sem graça povoaram as respostas dos pequenos que não se dão bem com as letras.A única explicação que encontro para o fato de algumas crianças amarem os livros e outras não,é a maneira como o livro é apresentado ao pequeno leitor.Se o livro chega até a criança como oportunidade de se divertir,conhecer novas histórias,lugares e personagens fascinantes, a reação será sempre de alegria e curiosidade.Por outro lado,se o livro é utilizado como castigo,ou vem acompanhado de cobrança,notas e avaliaçãos,tem toda razão quem diz que é chato,cansativo e sem graça ler.O livro deve ser oferecido como um copo de guaraná e não como uma colher de xarope contra tosse.
Nunca me esqueci disso: eu tinha seis anos e havia acabado de chegar à escola,na véspera do dia das crianças.Depois de percorrer as ruas e atalhar pelos lotes vagos do bairro em que eu morava,debaixo do sol de meio dia,fui direto ao filtro que ficava ao lado da mesa da professora para matar a sede.Copinho de alumínio na mão,abro a torneira e qual não foi a minha surpresa quando o copo se encheu de guaraná! Devidamente alertados pela minha cara de alegria,formou-se uma fila de meninos de copo em punho atrás de mim.Vale lembrar que, naquela época,refrigerante costumava aparecer só de vez em quando,geralmente nos almoços de domingo numa garrafa de um litro que era dividida pela família inteira( e quando sobrava um pouco no fundo do casco era levado de volta para a geladeira,com uma colherinha de mexer café,atravessada no gargalo para o gás não sair - como se o gás fosse uma espécie de saci que ficasse preso na peneira de cruzeta....) De nenhum presente, que ganhei naquele ano, tenho lembrança,mas da surpresa do filtro que soltava guaraná eu nunca me esqueci.
É isso! Os livros estão carregados dessa surpresa,cheios dessa novidade,desse ' o que vai acontecer se eu virar essa página?'
que o filtro cheio de guaraná trouxe para as crianças na sala de aula aquele dia.Quando passamos a oferecer aos jovens leitores os livros como esses objetos mágicos que são,passaremos a ver mais sorrisos e olhos brilhantes que caretas e bocas retorcidas.Os professores,mas sobretudo os pais,devem se empenhar em apresentar os livros para os pequenos como a maravilha que eles realmente são.E, convenhamos,não tem muita coisa melhor do que voar para a Terra do Nunca com o Peter Pan,andar a cavalo com Dom Quixote ou visistar o Sítio do Pica Pau Amarelo.Despertar na criança a sede pela gostosura que é ler uma boa história é garantia de que o livro será companhia inseparável pelo resto da vida.E sempre tão agradável,quanto brincar,jogar bola, nadar ...ou encontrar guaraná no filtro.
Daniel Bicalho em outubro de 2010
- Daniel é um cronista brilhante.Proprietário da Boutique do Livro,onde compro livros e mais livros,mensalmente.Como eu,é um apaixonado por leitura.Sempre quis homenageá-lo aqui,transcrevendo um texto dele, mas não sabia qual escolher.Hoje resolvi: coloquei o último que li,recentemente.Meu presente para vocês,meus amigos e amigas,pelo dia da criança.
Maria Neusa em outubro de 2010