Ao Homem da Minha Vida

AO HOMEM DA MINHA VIDA

Teria tudo para escrever um texto melancólico, “carregado” de rancor e mágoa, tendo em vista a data de hoje, 21 de agosto de 2006, e, exatamente há 20 anos atrás, “perdia”minha filha Roberta, Beta, como a chamava, aos quatro anos de idade. Porém, hoje, diferentemente de tudo que poderia lamentar, quero homenagear uma pessoa, precisamente, um homem que me ajudou muito em todo esse “caminhar”, em que lutei para manter minha filha viva e em condições de sobrevivência, ao menos, dar-lhe um pouco de dignidade, independência, face aos problemas de saúde (encefalopatia), que passou a apresentar no quinto mês de seu nascimento.

Retroagindo no tempo, em 12 de dezembro de 1982, nascia uma menina linda, primeira filha de um casamento de mãe e pai, de 21 e 20 anos, respectivamente. Nessa época, além de todo o carinho que recebeu dos familiares, quando de sua chegada, eu já trabalhava no Tribunal Militar, onde era feliz porque, ainda, não havia juízes machistas e preconceituosos.

Tomei posse, mediante prova em concurso público, sendo aprovada e nomeada escriturária, sendo aceita, sem reservas. (Digo sem reservas porque fui a primeira e única mulher a trabalhar naquela Justiça Castrense, naquela época, nos idos de 1977), para secretariar o Presidente daquele Tribunal, o Doutor Mozart Andreucci, figura encantadora e sábia, nos seus mais de 65 anos e, juntamente com ele, conheci o assistente militar daquela presidência, o senhor RM, um homem, atencioso, charmoso, 33 anos, alto, loiro, cabelos levemente grisalhos e dono de um olhar que cativava a tudo e a todos, além de possuidor de uma beleza estonteante, e, por coisas que só o Destino pode explicar, surgiu uma amizade entre nós que garantiu a paz de espírito em meu coração alguns anos mais tarde, quando me casei e, posteriormente, vim a descobrir que a Roberta, aos 5 meses de idade, era uma criança especial, ou seja, não teria condições mentais de vir a falar, andar, enxergar.

Imagine uma mãe desesperada, onde foi feito de tudo para tentar desmentir o que a medicina me avisava e, mesmo assim, tentar por todos os meios possíveis para fazer algo que pudesse oferecer um mínimo de condições à minha filha Beta, que foi se tornando mais e mais dependente, literalmente de tudo e todos, sem contar o preconceito e discriminação que sofria diante de outras pessoas e crianças porque era “diferente”.

É duro, porém, verdadeiro que a maioria dos “amigos” se afastem num momento como esse, porque eu já não era mais a Roseane alegre, disponível para passeios, viagens, além de pagar a conta de todos como antes. Agora tinha uma filha que requeria todos os cuidados redobrados de uma mãe zelosa e preocupada em dar-lhe o mínimo de condições, ao menos de não sofrer as dores físicas. Daí a necessidade de montar uma clínica em casa, onde contratei profissionais adequados para tal finalidade.

E, foi esse homem, RM, que mencionei no início desse meu relato, que me fazia companhia até quando a Beta precisava ser internada em hospitais para tomar soro injetável na veia da cabeça, para “sair” do Edema Cerebral devido às convulsões que sofria, a ponto de esperar por ele, pela manhã, para eu poder tomar um banho e comer algo. Isso porque, somente nele eu confiava nesses momentos tão delicados de fragilidade da Beta (ela não possuía nenhum movimento próprio, equilíbrio, ou mesmo coordenação motora). Assim, ele olhava por ela, enquanto eu ia suprir minhas necessidades básicas (banho, comer algo, falar com médicos).

E, durante todo o tempo em que ela viveu, foi ele quem me alentou, me deu forças para continuar lutando. Foi RM quem me “segurou” para que eu não sucumbisse, diante de um quadro negativo, no qual encontrava-me impotente para mudar. Nem preciso comentar que a maldade da maioria das pessoas é tamanha que muitos diziam (pelas costas, é claro!) que a Beta era filha dele e não do próprio pai...

A amizade que nos unia era tão grande que jamais passou do amor platônico ou espiritual, a ponto de ficarmos horas e horas num local tranqüilo conversando sobre a Beta e seu “problema” e conseqüentes soluções para abrandá-lo. Ele enxugando minhas lágrimas e, ao mesmo tempo me consolando para que eu não “entregasse os pontos”.

Meu marido? Há essa hora já havia se “escondido” na dor e permitia tudo, desde que EU MESMA FIZESSE e PAGASSE e só o comunicasse depois...

Certa vez estávamos na USP, eu e a Beta, onde a mesma se submeteria a um exame denominado Cariótipo (naquela época só havia ali o tal exame e mesmo assim eram realizados apenas 4 (quatro), por semana para crianças de todo o Brasil). E, ao observar o movimento daquele lugar, comecei a me desesperar. Percebi que ali estavam estagiários para a feitura do exame e não médicos. Sozinhas, eu e minha filha e sem apoio algum, eis que olho o horizonte e vejo um homem alto, nos seus mais de um metro e oitenta, loiro, lindo, fardado, vindo em minha direção, como se os anjos o houvessem chamado. Imediatamente meu semblante se anuviou e logo RM estava no “comando” da situação procurando médicos especialistas para realizar o exame“Cariótipo”na minha filha. E, eu já me encontrava tranqüila, pois tinha a certeza de que sairia tudo certo e sem nenhum sofrimento à Beta que, após o exame, quando a peguei, novamente, no colo, ela “sorria” pra ele, como se quisesse agradecê-lo por tudo que ele estava fazendo por nós naquele instante. Jamais esquecerei esse momento de ternura expresso no olhar espiritual da minha filha (hoje, mais do que nunca sei que não enxergava como nós, mas seu espírito sim).

Daquele dia em diante, todos os exames, consultas que a Beta precisava se submeter, era RM quem nos fazia companhia, a ponto de muitos acharem que ele fosse o pai e, a dignidade e serenidade desse homem era tão grande que nunca se perturbou com a maledicência de terceiros. Quantas vezes meu pai o agradeceu por estar comigo naqueles momentos porque, também dava tranqüilidade ao velho Alcione para poder trabalhar em paz (não que não me ajudasse, pelo contrário, mas, confiava no Capitão e sabia que nós, eu e Beta, também).

Aos domingos, geralmente RM corria num parque que prefiro não mencionar o nome, e lá íamos eu e Beta vê-lo correr, enquanto ela tomava um pouco de sol e respirava o ar do clima arborizado do local. Depois da corrida, sentávamos, papeávamos. Ela sorria, brincava do seu jeito e ele, passado algum tempo depois, nos colocava no carro e vínhamos embora deixando-o sozinho lá no parque, mas, voltávamos, eu e Beta, felizes porque, naquela época era o único homem que entendia o que eu sentia e sofria. E, repito, nunca, em nenhum momento sequer cobrou ou falou algo a respeito. Como disse, nosso amor era transcendental e hoje sei que Deus o enviou para amortecer meu sofrimento de mulher e mãe.

Voltando.

As convulsões, com o tempo foram se intensificando e nos seus quase 4 anos, precisou ser internada, urgentemente, dado o edema cerebral que se formou devido aos ataques de convulsões que, passaram a ser quase que incessantes. Ao chegar no OS do Hospital, a aflição dos médicos foi demasiada para aquele mister e, com isso, deram-lhe o medicamento de forma precipitada (injetado na veia, quando deveria ser aplicado, gradativamente, via soro)e, em conseqüência, veio o que mais eu temia, a parda cardíaca e, por mais que os médicos e enfermeiras tentassem, o coma foi irreversível, e, conseqüentemente, a sua remoção para a UTI.

Passados seis dias, para mim, intermináveis, de UTI, onde cheguei a emagrecer mais de 10 quilos, face ao de desespero em que me encontrava, principalmente porque não me era permitido ficar ao lado de minha filha. E, em 21 de agosto de 1986, por volta de 9 horas, recebi, em minha casa, um telefonema do Hospital “Cruz Azul” para que fosse levar alguns documentos. Nem preciso dizer que meu coração de mãe já sabia que a Beta havia partido. Me vesti de branco (sabia que ela não gostaria de me ver de preto) e me dirigi, quase como um robô, para o hospital. Quando lá cheguei já estava RM que me perguntou o que e como eu queria que fosse feito em relação às providências decorrentes, e cuidou de tudo, féretro, velório e etc, na forma e jeito em que eu havia pedido e, ainda não permitiu que determinados “urubus”travestidos de amigos se aproximassem de mim para saciarem a alegria de me ver destruída por dentro, sem um pedaço de mim que havia perdido para sempre.

Fui para o cemitério, juntamente com RM e minha avó que ficaram o tempo todo a meu lado e, posteriormente, também, dias e dias cuidando de mim, tentando me fazer voltar a viver...

Esse é um resumo dessa história verídica e cheia de sentimentos dos mais diversos. Mas, como disse no início, hoje não quero lamentar a morte da minha filha aos 4 anos de idade. E, sim, homenagear aquele homem que durante anos foi o maior ser humano que já conheci na vida, o melhor, o mais sensível, o mais amigo, o eterno RM que jamais esquecerei enquanto viver.

E, esteja onde você estiver (sei que está vivo e bem!) saiba que você, RM, nunca, jamais sairá da minha lembrança e do meu coração. E, se amor existe, foi o seu amor quem me alimentou durante todo aquele tempo e me fez chegar até aqui. Se há alguém nesse mundo que lhe deseja toda a felicidade e lhe devota toda a gratidão e ternura até o fim dos meus dias, sou eu.

Todas as manhãs, embora não o veja há mais de 15 anos, lembro e rezo para que Deus olhe por você, dando-lhe em dobro toda a força, energia e felicidade que me proporcionou.

Também saiba que o amamos muito, eu aqui na terra e, ela, minha Roberta, onde quer que esteja.

Roseane Pinheiro de Castro

21 de agosto de 2006

Zane
Enviado por Zane em 06/09/2006
Código do texto: T234155