A PERSONALIDADE

Shoock, shoock, shoock, shoock, Piuííí, piuííí,píuííí, piuííí, piuííí, piuííí, piuííí, shoock, shoock, shoock, SHOOCK, SHOOCK. TCHÚÚÚúúúúúúú ....................

No relógio da estação, os dois ponteiros do velho relógio, unem-se no alto do mostrador, num abraço de dor.

O condutor do expresso de luxo, quase não conseguia conter-se de tanta curiosidade. Estava realmente, muito intrigado com aquela inusitada viagem, alias inusitado era tudo o que ele estava vivendo nos últimos meses.

Na plataforma engalanada para receber alguém muito importante; lá estava ele, silencioso e altivo; imóvel. Imobilidade esta que começava a dissolver-se com os pequenos tiques nervosos que afloravam nos cantos dos olhos e lábios. Não era para menos; os últimos dias que antecederam sua partida foram cercados de cuidados tais, que ensejavam toda sorte de conjecturas a respeito da importância da missão que lhe haviam confiado.

A quem deveria ele conduzir? Essa pergunta, já se fizera centenas de vezes.

Quem seria? Com certeza um figurão da política; sentenciou; ou será um coronel do café? Um militar de alta patente? Um cientista famoso? Um grande filósofo? Um venerável religioso? Improvável.

Estampada em seus cabelos brancos, sua experiência, dizia-lhe que naquela pequena estação de cidade do interior, não haveria personalidade tão importante que justificasse ou merecesse toda a pompa, o segredo, e os cuidados que cercavam essa missão

O piso outrora rústico, fora cuidadosamente revestido de mármore branco.

Os metais; maçanetas, dobradiças de portas, luminárias em metal amarelo, exaustivamente polidos, agora estão uma maravilha, é um brilho só. E a iluminação; há a iluminação fora toda trocada, está novinha em folha; uma pintura, e por falar em pintura, os melhores profissionais da capital deram o máximo de si naquele trabalho tão especial. Conseguiram realizar uma pequena obra prima.

O tapete vermelho estendido desde a porta do salão de passageiros até a porta do carro de luxo do expresso da meia noite revelava, ou melhor,reforçava suas suspeita e enfim dava-lhe a certeza de que a personalidade esperada era muito mais do que ele estivera cogitando; senão vejamos; porque? No plano de viagem ordenavam-lhe fazer um itinerário totalmente inusual; até mesmo incompatível com o porte da missão, pois o expresso de luxo da meia noite somente em casos excepcionais, desviava-se das rotas das grandes cidades. E o que dizer do tempo de parada. Era indeterminado. E por que no carro não haviam passageiros considerados normais, aqueles que apesar de importantes, não demonstravam algo alem disso. Os passageiros notava-se eram convidados especialíssimos; percebia-se que eram muito especiais uns para com os outros e muito provavelmente para o passageiro tão especial que ele haveria de conduzir em breve.

Os passageiros convidados estavam cada vez mais ansiosos e felizes na expectativa de receberem essa personalidade tão misteriosa para os tripulantes da missão mas que para eles era de doce lembrança e especial carinho .

Abrira nervosamente o envelope a ponto de rasgá-lo e quase rasgando junto o seu conteúdo, tão logo partira no início da missão..

No papel em suas mãos trêmulas, as ordens claras.

Encostar a composição na plataforma, rigorosamente as 24:00 horas com todas as luzes acessas.

Aguardar todo o tempo que se fizer necessário para que os convidados postem-se ao longo do tapete vermelho para receberem o ilustre passageiro e o mesmo despessa-se dos seus queridos, que são muitos e embarque. Ponto final.

Outro mistério; mais um mistério.

E as demais ordens.

Sim; aquelas de praxe, aquelas que faziam parte da rotina de qualquer viagem do expresso de luxo da meia noite que eram de natureza do expresso por si só, muito especiais; ele não as recebera.

Definitivamente aquela não era uma viagem como as outras que ele havia conduzido; poucas por sinal pois o expresso de luxo da meia noite corre veloz pelos trilhos em casos excepcionais, para transportar um cientista famoso, um sábio reconhecido pelas nações; um filósofo de renome, um benfeitor da humanidade.

Não; aquela realmente não era uma situação que ele já tivesse vivido; as peças não se encaixavam. Há mais de um mês os mecânicos tinham sido escolhidos a dedos para vistoriarem todos os sistemas de propulsão: caldeiras, manômetros, as peças de tração; como os truks de rodas, sistema de freios, que mereceu por parte de toda a equipe atenção redobrada. As ordens eram rigorosas. Substituir todas as peças que estiver com sinais de exaustão ou mesmo leve desgaste; bem como todos os cilindros e sapatas de freios, manivelas, alavancas, pinos, correntes, mangueiras; enfim tudo que sofre maior desgaste. Até aí tudo bem em se tratando de um ilustre passageiro; mas o que dizer da reforma total feita pela melhor equipe de mecânicos e engenheiros que ele conhecia; da locomotiva número 01. É, ela mesma. Aquela importada que a cinqüenta anos estava exposta em museu da capital, uma peça única, uma raridade de incalculável valor histórico, estava ali parada, tendo atrás de si depois de meio século de merecida aposentadoria, um tender reluzente, abastecido com as melhores lenhas para fogo, como a aru eira e o angico, raras nesses tempos, que produzem um fogo forte,muita brasa para sustentar o calor dentro da caldeira e que no final da queima, deixam pouca cinza e carvão para serem removidos na limpeza que se faz no término da viagem.

Desde o início tivera muitas dúvidas a respeito daquela viagem. Quantas e quantas perguntas borbulhavam em sua mente. Uma após outra sem uma resposta satisfatória. Desde a reforma total da locomotiva 01, uma relíquia resgatada do seu merecido repouso, colocada fora de atividade depois de mais de meio século de relevantes serviços prestados a população.

A restauração completa do carro de luxo que em outros tempos somente era utilizado em viagens secretas para transportar personalidades de renome mundial em secreto. Todos os cuidados tomados, chegando a um requinte nunca visto por ele, agora davam-lhe uma certeza. Uma única. A personalidade esperada não era apenas ilustre e sim excepcional.

Com isso ele que era experiente nessa lide, o melhor na sua especialidade de condutor do expresso de luxo da meia noite, levando grandes personalidades, começou a ter lampejos de memória. No início muito difusas, difíceis mesmo, até que aos poucos, bem devagar, foram crescendo, crescendo em sua mente. Bolhas e bolhas de percepções, tênues lembranças envoltas em brumas tornando-se claras, aglomerando, juntando, compactando-se até que ........ sim era isso, só podia ser isso, Sua mente ilumina-se e ele teve a certeza, a resposta que vinha buscando durante aquele exaustivo período preparatório; para ele e toda a equipe. A personalidade fazia , sem dúvida, jus a tudo aquilo.

Naquele momento sua ansiedade guardada durante todo aquele tempo cedeu a uma imensa alegria. Da alegria a euforia; então ele junta-se aos ilustres convidados na expectativa de finalmente ver a porta da sala de passageiros abrir-se.

Ao lado esquerdo da plataforma a euforia não era menor.

Estava lá, ultimando os preparativos com seu mais novo uniforme, confeccionado em puro linho branco especialmente para a ocasião, com lindos galões e botões dourados; seus instrumentos cuidadosamente polidos, reluzentes feito ouro; a famosa banda, do não menos famoso Maestro Ubaldo, que com sua nova batuta toda feita do mais puro cristal, agitava-se daqui pra lá, de lá pra cá, conferindo os mínimos detalhes.

Tudo teria que sair perfeito; mais que perfeito., afinal não era sempre que eles exibiam-se para uma personalidade tão importante, daquele quilate e que em minutos iriam dar as boas vindas em forma de uma linda retreta especialmente escolhida por todos eles.

Já nem se lembravam qual fora a ultima vez que isso ocorrera e daquela vez não seria como das outras vezes. Essa era uma personalidade muito querida por todos eles.

Ele os havia conquistado; no início pela sua presteza, agilidade e responsabilidade ao cuidar dos instrumentos, partituras, estantes. Distribuindo a todos suas respectivas pastas nas ocasiões em que se exibiam. Depois não se contentando de tanto orgulho, lá estava ele a correr mundo, divulgando os gloriosos feitos da não menos gloriosa e furiosa banda do maestro Ubaldo em outras plagas, em outros rincões, até que ele a transformasse em lenda viva, varando por quase um século; lenda essa sustentada por seu eloqüente e apaixonado testemunho.

Eles tinham motivos mais que de sobra para estarem assim, tão excitados; mesmo porque durante aqueles meses, eles não pensavam e não faziam outra coisa que não fosse ensaiar, ajustar o novo fardamento, polir os instrumentos para que na tão esperada noite tudo fosse impecável; pois a eles e aos convidados fora revelada a identidade da personalidade; por isso eles estavam naquele estado de euforia, de extrema alegria ao qual viera juntar-se o condutor do expresso de luxo da meia noite, ao ficar claro em sua mente, agora exultante, que só havia uma personalidade entre tantas que ele conhecera, que merecesse tanta pompa, tantas lembranças carinhosas, tanta admiração e sobretudo. Tanto respeito.

O CLICK da porta cala a todos. . . . .

Por uma eternidade de três segundos ela abre-se. L e n t a m e n t e . . . . . revelando a todos a solenidade do momento que desenrola-se do outro lado da sala de passageiros.

Abraços, beijos de despedidas. Um último adeus. Corações partidos. Já, muitas saudades.

Na plataforma a Banda perfilada, a batuta agitada no alto, e o doce som de uma linda flauta começa a invadir o ar. Juntam-se a ela, violinos, flautins, em seguida todo o conjunto, ofertando a ele o seu tributo de agradecimento, admiração, respeito e de amor para quem carregou em sua mente em suas lembranças e em seu coração, todos eles.

De um lado soluços tristeza, amargura pela partida de seu líder, amigo, conselheiro, guia, farol a sinalizar caminhos de retidão, lisura, trabalho, caráter, Um coração manso, num peito de rocha. Um grande espírito, num corpo baixinho.

Em princípio, d e v a g a r; um a um ele despede-se.

Pede licença a todos.

Num salto está ao lado de sua amada a quem se uniu para a eternidade. Lágrimas de amor e agradecimento a quem o acompanhou nessa longa jornada, ajudando-o a transpor os abismos que se abriram sob seus pés. Um a um ele os venceu de mãos dadas a ela. Um último beijo em seu coração; que prometeu em breve juntar-se a ele.

Um afago na filha querida que repousa ao lado da sua amada.

A mão direita erguida no ar abençoa seus queridos.

De volta a estação um último aceno.

Passos miudinhos, pequenos, vacilantes sobre o macio tapete rubi.

Um olhar para seus amados que com seus instrumentos, beijam lhe as mãos.

A cabeça aos poucos vai se erguendo, e eis a grande alma em toda a sua plenitude, sua.

Sobrancelha aquilina, seu perfil majestático. Os olhos outrora embaçados, agora brilham, o brilho dos heróis, e ele avança devagar para a sua adorada Rita, sua tão desejada e amada mãezinha, que de braços abertos o recebe em seu peito de amor e luz; e o joãozinho da Rita explode em soluços de gratidão e amor por sua adorada mãezinha que mesmo de longe sempre lhe deu forças para que ele se tornasse o herói de todos nós.

A mão direita novamente no ar recebe o bastão com a bandeira verde, o apito pende da boca, a lanterna com sua luz esmeralda é balançada de um lado a outro, anunciando a iminente partida.

Uma ultima conferida na plataforma, um olhar de despedida, um adeus emocionado, um esperançoso até breve.,

Príííí. . . . . . . Piuííííí. . . . .

Príííí . . . . . . Piuííííí. . . . .

Príííí. . . . . . . Piuííííí. . . . .

TEM; TEM, TEM, TEM, TEM, TEM, TEM, TEM, TEM, TEM,TEM, TEM, TEM, . . . .

SHOOOOOCK, SHOOOOCK, SHOOOCK, SHOOCK, SHOCK, SHOCK, SHOCK.....

SHOCK, SHOCK, SHOCK, SHOCK, TEM, TEM, TEM, TEM, TEM, TEM, TEM . . . . . .

Campinas, 10 de junho de 1995

Zé Ricardo

Este texto não é meu foi escrito pelo meu pai no dia seguinte (se não me engano) do falecimento do meu avô, João Galante, estou postando-o aqui a pedido dele.