José Saramago fez a morte cair de joelhos diante da sinfonia de Bach
“Por um instante a morte soltou-se a si mesma, expandindo-se até às paredes, encheu o quarto todo e alongou-se como um fluido até à sala contígua, aí uma parte de si deteve-se a olhar o caderno que estava aberto sobre uma cadeira, era a suite número seis opus mil e doze em ré maior de johann sebastian bach composta em cöthen e não precisou de ter aprendido música para saber que ela havia sido escrita, como a nona sinfonia de beethoven, na tonalidade da alegria, da unidade entre os homens, da amizade e do amor. Então aconteceu algo nunca visto, algo não imaginável, a morte deixou-se cair de joelhos, era toda ela, agora, um corpo refeito, e por isso é que tinha joelhos, e pernas, e pés, e braços, e mãos, e uma cara que entre as mãos escondia, e uns ombros que tremiam não se sabe porquê, chorar não será, não se pode pedir tanto a quem sempre deixa um rasto de lágrimas por onde passa, mas nenhuma delas que seja sua. Assim como estava, nem visível nem invisível, em esqueleto nem mulher, levantou-se do chão como um sopro e entrou no quarto…” José Saramago – As intermitências da morte (2005)
O escritor José Saramago, Prêmio Nobel de Literatura pelo romance Memorial do Convento, encontrou-se com a morte nesta terça, 18 de junho. E desta vez, não foi possível driblá-la com as palavras. O próprio Saramago uma vez filosofou acerca da mortalidade humana ao dar uma entrevista sobre o livro As intermitências da morte, em São Paulo: “O ser humano alimentou sempre a esperança de conseguir a imortalidade, mas sem a Morte a Vida seria um caos”.
Infelizmente, não é fácil lidar com as perdas de quem admiramos. Conheci Saramago em 2000, durante uma coletiva de Imprensa para o lançamento do seu livro “A Caverna”. Espero ler as outras obras que ainda não li dele. Até agora só O Ensaio sobre a Cegueira e o Memorial do Convento, que me provocam imagens e reflexões até hoje…