O PESCADOR (HOMENAGEM)
" Quando as ondas quebram sobre si mesmas, o homem se cala porque sua alma também fica em silêncio "
A expedição
Uma grande pescaria começa em terra seca, onde o peixe é antecipadamente pescado lá longe no mar. Adquire sentido quando os demais amigos pescadores
concordam que a pescaria será boa e muitos peixes estarão à espera de nossas tarrafadas e linhas de pesca...
Aquelas roupas surradas, o boné roto, o calçado pra lá de usado, a lona para a barraca, as panelas velhas, a lanterna e os apetrechos de pesca são resgatados dos armários gavetas e dos cantos para fazerem parte de uma expedição....
O material de pesca mantido em manutenção especial é cercado de cuidados extremos
Como a tarrafa e seus rufos, as linhas e seus nós, a carretilha e a lubrificação, a lanterna e suas pilhas, o fósforo, o samburá....e os últimos detalhes são lembrados em clima de ansiedade, o que torna tudo mais apaixonante...
A alimentação e a bebida não são esquecidas e as quantidades são consideradas em excesso devido a uma possível pescaria prolongada aos peixes...
Sr. Domingos ( o Domingão)
O privilégio de conviver com um pescador de reconhecida técnica e homem de correção e disciplina foi um dos fatores marcantes desta nossa caminhada, em que o destino nos concede momentos únicos e pessoas ímpares para nosso fortalecimento e crescimento humano....Homem de olhar analítico e forte personalidade via a direção das nuvens em dia de sol e avisava que ia chover no dia seguinte... de sair em uma tempestade confiante na volta sob o sol daqui a pouco...e diante de suas previsões a maioria de nossas pescarias se fizeram ao longo de muitos anos...e como veremos adiante nossa soberba caia por terra diante de sua simplicidade e sabedoria.
O acampamento
A chegada às praias da região, Praia Grande (do Ervino), Barra do Sul (salina) e da foz do Rio Itapocú era alvissareiras e cheias de conversas e agitação...
Os acampamentos seguiam uma rotina que não era militar, mas tinha sua razão de ser ...mais horas para pescar, em lugar seguro, com lenha para queimar a noite toda e um mínimo de conforto para conversar, comer e dormir....
Na foz do Rio Itapocú, local da maioria das pescarias, havia muito material para nossas fogueiras: pneus velhos, plásticos, troncos de árvores, bambus, igarapés e palha seca, às vezes estes materiais se encontravam abaixo do areal e o trabalho para retirá-los era estafante, mas prazeroso....
A fogueira
Quando, envoltos pela escuridão, nada é mais aconchegante e animador do que uma fogueira, ainda mais à beira-mar.
O clima que se cria em sua volta nos trazem lembranças, de lugares e pessoas, a concentração nas labaredas nos leva a meditar sobre nossos sentimentos e nossa alma, alimentar a fogueira com galhos de árvores e demais objetos nos animam, pois cada peça lançada reanima a fogueira em luz e calor..
E cada um destes objetos provoca uma reação diferente na fogueira, os troncos dão calor e duram bastante, os plásticos aumentam a claridade e calor, as palhas secas também e além emitem fagulhas ao céu, os bambus são especiais pois nos fazem voltar à infância onde cada estouro liberta as gargalhadas e o espanto, rimos feito crianças ...todos tem seu respectivo odor e nossas roupas o reterão com certeza..
Em volta de uma fogueira decidimos o destino do mundo, criamos pontes e destruímos obras mal feita, consertamos o mundo em minutos e elegemos candidatos próprios ao próximo governo, aproveitamos e derrubamos o governo atual, as virtudes de nossos filhos, a correção de nossos pais, o futuro de nosso pais, o tempero de nossa mãe e nossa esposa, as vitórias de nossos times, o cabeça de bagre que perdeu o gol, o goleiro espetacular, o atacante fatal, enterramos momentos do passado em cova rasa, descobrimos que alguém mais pensa como nós e nos fortalecemos, que alguns duvidam de nós e não os entendemos... enfim temos a liberdade de emitir opiniões , vencer nos jogos e na vida.
A tempestade
Em momentos de calmaria em que o vento respeita a tempestade e o mar se ajoelha ao pés do trovão, a lua acuada se esconde atrás dos entes da natureza a espera de uma luta desigual....
Os pescadores se recolhem em sua frágil barraca de lona, o material de pesca guardados e a fogueira companheira de todos os momentos é momentaneamente esquecida ao léu...A barraca estaqueada pelos bambus e coberta por um fino manto resistirá?
Os pescadores se juntam em torno das estacas auxiliando-as pela força que virá....E o vento como que retido pelas entranhas da tempestade se liberta e impetuoso e desenfreado se lança sobre o areal, sobre a restinga e sobre a água de sal.
O mar como numa boca de forno reflete as línguas de fogo lançado pelas narinas dos dragões medievais, figuras fantasmagóricas surgem em nossas mentes, mas as goteiras nos chamam ao presente e a humildade do homem em respeito a natureza se pronuncia pela fragilidade do momento.
Acreditamos num Deus que nos perdoa os pecados, nos protege e não nos chamará tão cedo....
E a fogueira lá fora esquecida, agoniza lançando pequenos lances de fumaça ao relento. A natureza que emerge poderosa em forma de água , trovão e relâmpagos vem socorrer aos troncos e bambus que inertes eram devorados pelo fogo...
A tempestade passa deixando rasgos em nossa barraca, algumas sustentações quebradas, nossos corpos molhados, pequenas escoriações, mas o vão central da barraca intacto protegido pelas mãos e corpos dos pescadores...aí acreditamos que Deus nos mandou a chuva para um novo aprendizado e que nos devolverá a lua para vermos nosso campo de batalha. E no rescaldo dos estragos a certeza de que a pescaria continuará, pois o que se perdeu não se compara ao que se ganhou, momentos de adrenalina, medo e superação. Em momentos, a fogueira ressurge e com ela nosso animo e disposição para continuar a pescaria...
O vento e a sabedoria
As pessoas e os acontecimentos ocupam um espaço próprio em nossas vidas em momentos especiais e que tudo que é possível nos é ensinado, mas aprendemos somente em nosso devido tempo o que devemos aprender...
O Mestre Domingão nos ensinou o segredo da terceira onda , onde estão os peixes, nos ensinou a olhar o mar calmo ou bravio e ver onde estão os peixes, nos ensinou a jogar a tarrafa sobre os dedos dos pés e enchê-la de robalos, a acreditar que tudo tem planejamento na vida, até um lance de tainha, um acampamento, uma fogueira, uma pescaria à beira-mar..., que devemos olhar o céu e ver onde estão as andorinhas, olhar o mar e ver para onde vão as correntes marinhas, olhar a fumaça de uma fogueira e saber que o sueste esta a caminho e é hora de levantar acampamento,que o vento nordeste chegou e pescaremos tranqüilamente, que as tempestades na praia assim como em nossa vida são passageiras, mas voltarão.. nunca viveremos sempre na calmaria, mas elas também voltarão...
Onde estão nossos peixes...
Os peixes sempre foram os objetivos de nossas pescarias, mas, às vezes, me vem à memória que o objetivo real mesmo eram os preparativos para a expedição, a adrenalina para a viagem de carro pelas estradas esburacadas, empoeiradas e enlameadas. A travessia da lagoa, a batera furada e as águas invadindo o fundo, a retirada frenética da água como se afundássemos a qualquer momento, as risadas de quem sabia nadar, os lanches e suas novidades, alguns pareciam levar um cacho de bananas, outros pães para um batalhão.
Á tardinha, após a construção da barraca, sentados em um barranco...vendo os igarapés deslizarem desgarrados sobre o leito do rio, as conversas monossilábicas com os nativos da região.. o fulano que vendeu tudo e foi para a cidade, o beltrano que brigou a faca com o irmão e o matou, a fuga e a cadeia, o enterro, a viúva e o novo pretendente...a plantações minguadas, a luta pelos peixes e a pesca predatório, o futuro incerto...
O cardume de pratos
Peixes existem muitos, mas saborosos com a tainha, o robalo e o linguado, além do camarão, desconheço....talvez porque estes já me bastam em meu cardápio simples e ao mesmo tempo requintado..... o caldo de corvina também me agrada com certeza..., a gaivira e a sardinha (sem espinha) que a tempo desapareceu da região completa um cardume de pratos deliciosos.... E estes pescados, com exceção do camarão e da corvina, era o resultado de nossas pescarias, cada peixe na sua época... as tainhas valentes e espertas em grandes cardumes eram a coqueluche das pescarias de inverno.. nada se compara em pescaria de tarrafas a estas maravilhas. Nas águas quentes, os robalos que tem nariz tão grande que dão imenso trabalho para desgarrar das malhas também são vistos em cardume e nos fazem assobiar de alegria quando são pegos... o linguado já é uma raridade e o pescador que o captura deve virar algumas cambalhotas sobre a areia...merece um jantar a luz de velas, regado a vinho tinto marca campo largo...porque não somos ricos em posses, somo ricos em alegria de viver, em aproveitar a vida nas pequenas coisas, a provar um beijo e querer repetir do mesmo jeito.........a saborear um peixe do caldo da cabeça ao filé frito, ou do peixe por inteiro assado sobre o braseiro...
O cheiro da fumaça e o brilho das estrelas
A noite sem nuvens nos permitia ver além de nosso pequeno mundo.. as estrelas e as galáxias distantes e nossa imaginação via desde nosso passado para um futuro além ....
Nosso acampamento continua lá, estamos ainda em volta daquelas fogueiras, as vozes que foram levadas pelo vento retornam em noites de estrelas e o barulho do estourar dos bambus ainda persistem em nossas mentes. Vemos a luz da fogueira adentrando a noite e suas fagulhas sendo devoradas pela escuridão.
O retorno
Nem tudo tem retorno, não da mesma forma......nada se repete como um dia foi...
Temos o mesmo céu, o mesmo mar, as mesmas estrelas, o mesmo luar, um fogueira parecida, uma barraca semelhante e num local parecido...mas as pessoas mudam, mudam os pensamentos, os relacionamentos, as faltas e os acertos, tropeçamos nos acidentes de percurso. Por isso cada momento é único, cada convívio é único, cada sorriso é único, cada abraço é único, cada lágrima é única e cada pescaria é única....
Hoje não temos a companhia do Sr. Domingos, ele se encontra pescando com velhos amigos em alguma praia longínqua de areias brancas, num mar incrivelmente azul e infinito, para onde só vão os grandes pescadores. E suas pescarias são as almas que ele tentará resgatar para estar com ele quando outros pescadores partirem.... mas observo que ele não está só.... enquanto ele abre em círculo sua tarrafa, no remo Deus direciona a batera...