O SAXOFONE
Meu saudoso pai Constantino era saxofonista. Aprendeu música e a tocar o instrumento, quando meninote ainda, no internato do antigo Instituto João Pinheiro, em Belo Horizonte, dos dez aos dezoito anos de idade.
Muitos anos depois, já casado com Dona Flaviana, minha mãe, e cheio de filhos, ele tocava numa banda famosa da capital, a Orquestra do Brini, composta de vinte e cinco figuras. Ele era o primeiro sax alto e fazia cada solo de arrepiar nas apresentações da banda, em festas dançantes e bailes comemorativos, na Belô e às vezes no interior do estado. Lembro-me bem dele solando magistralmente “Pampa Mia”, em ritmo de samba, acompanhado por toda a orquestra, num dos bailes do “Esporte Clube Renascença”. Eu, rapazinho, ensaiava os meus primeiros passos na dança de salão, freqüentando festinhas juvenis e os inesquecíveis bailes do clube tecelão.
A música, para o meu pai, era mais que um “hobby”, era paixão, assim como o futebol. Ele tinha a profissão de Almoxarife, era o encarregado desse setor na Cia. Renascença Industrial, mas tocava sempre nos finais de semana, garantindo mais algum dinheiro para as despesas de casa e a manutenção da sua grande família, mulher e dez filhos. Tocou em alguns clubes famosos de Bêagá, inclusive no “Cassino da Pampulha”, no tempo do Presidente Juscelino Kubitscheck, famoso “habitué” do lugar.
Quando meu velho partiu para os planos superiores, deixou no Rio de Janeiro, com o mano Aécio Flavio (um maestro já consagrado), o seu saxofone alto, cujo instrumento foi guardado com carinho pelo maestro até que, em 1989, meu caçula Daniel foi passear em férias pela cidade maravilhosa e ficou hospedado na casa do tio. Foram uns vinte dias de praia, sol e mar, além dos passeios e do contato com o ambiente musical diurno e noturno na casa do maestro, o qual possuía uma produtora musical, a “Lyra”, em Copacabana, além de um piano e um estúdio equipado na própria casa de Ipanema, por onde transitavam artistas famosos, como Mielle, Marisa Gata Mansa, Rosemary, Leo Gandelman e Milton Nascimento (o Bituca), entre outros.
Nesse clima, o Daniel, aos dezoito anos, experimentou a primeira manifestação musical em seu espírito jovem, tocando algumas notas ao piano do seu tio, após uma tarde na praia. O Aécio ficou tão entusiasmado que me ligou, dizendo:-
“- Aí, Betinho, esse menino seu leva muito jeito pra música, sabe? Ele sentou ao meu lado, no piano, ficou observando por um tempo, depois me pediu pra tocar, assim sem mais nem menos. Sentou-se, dedilhou algumas notas e não é que acabou tocando uma música de minha autoria com o Paulinho Tapajós, “Doce, doce”? É mole? ...”
Eu fiquei espantado, pois o Daniel, na nossa casa, jamais demonstrara interesse por música, apesar de saber que a minha família toda tinha ligação musical, cada um dos meus irmãos, seus tios, puxando um pouco do Velho Rêgo e da Dona Flaviana. O Aécio era maestro, pianista, acordeonista, flautista, eu ritmista (bateria, bongô, percussão) e vocalista, o Rubinho violonista, o Zé Afonso tocava cavaquinho, a Maria Inez cantava muito bem, enfim, cada qual tinha um pendor artístico. Era genético. E agora essa novidade!...
Mas, então, o maestro falou novamente:-
“- Velho, vou mandar por ele o saxofone que foi do nosso pai. Procure o Dino, um saxofonista aí de Belô, meu compadre, e peça-lhe pra ensinar teoria musical e o manuseio do instrumento ao Daniel. Caso ele se interesse e aprenda, o instrumento do avô passará a ser dele, caso ele não queira aí você me devolve o saxofone, tá certo?”
Topei o desafio e logo depois chega o Daniel do Rio com o saxofone a tiracolo.
Passados alguns dias, localizei o Dino no bairro Aarão Reis, mantive contato telefônico, falei do Aécio e da sua proposta e o músico ficou entusiasmado. Ele era compadre e amicíssimo do meu irmão, devia-lhe favores, como me disse e se dispôs a ensinar o Daniel a tocar o instrumento sem me cobrar nada, acreditem.
Uma vez por semana, sempre aos sábados, das quatorze às dezessete horas, o Dino ensinava ao Daniel teoria musical e prática instrumental do sax. Eu ficava na varanda da sua enorme casa, no Aarão Reis, confortavelmente relaxado numa espreguiçadeira, com uma vista maravilhosa à frente, ouvindo as instruções do professor ao seu jovem aluno lá na ampla cozinha.
Num sábado desses, adormeci na espreguiçadeira pois tinha almoçado suculenta feijoada feita com amor e carinho pela Dona Mari. Fui acordado pelo solo, meio capenga é verdade, da valsa “Branca”, ao saxofone do Daniel. Esfreguei os olhos, apurei bem os ouvidos e confirmei:- era mesmo o aluno novato, meu caçula Daniel, tirando suas primeiras notas do instrumento musical.
Ergui-me num salto, atravessei a sala, irrompendo na cozinha, chorando, abraçando e beijando o garoto, sob o olhar embevecido e o sorriso franco do mestre Dino.
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Meses depois eu completava cinqüenta anos e minha mulher organizou uma festa familiar, convidando todos os parentes pra comemorar o natalício. Vieram até meus primos do Cedro querido e alguns amigos próximos de Belô, além dos familiares da Dona Mari. Foi realmente uma festa plena de alegria, a marca registrada da nossa família. O maestro Aécio Flavio viera do Rio com sua flauta, o mano Rubinho de Barbacena com seu violão, eu toquei meu bongô e o Daniel então solou o “Parabéns Pra Você” ao saxofone, por música, lendo a partitura, numa verdadeira apoteose. Guardo até hoje as fotos daqueles momentos mágicos de entrelaçamento familiar.
Os meses se passaram, a vida naquela correria, o Daniel deixando de lado o saxofone e estudando com afinco para o vestibular de Medicina até que as provas chegaram e ele foi à luta, logrando êxito e passando entre os primeiros colocados.
Daí pra frente o instrumento ficou guardado no alto do armário de um quarto, silencioso e nunca mais foi tocado pelo garoto prodígio, o qual estava queimando as pestanas nos bancos da Faculdade de Medicina. Quando perguntado por que, ele sempre dizia que era “falta de tempo”, “os estudos me absorvem”, etc. e tal. A verdade é que jamais pegou no saxofone. Eu tentei dissuadi-lo, insistindo mesmo pra que voltasse a solfejar, pelo menos, o instrumento deixado pelo avô Constantino, mas não logrei êxito. Uma vez até chegou a tocar um pouco, soprando algumas notas para a namorada nova que arranjara na faculdade, mas estava sem embocadura. Não deu certo e largou de vez.
Aí eu não achei justo que ficássemos com o saxofone do meu pai e o devolvi para o maestro Aécio Flavio, no Rio. Muito a contragosto, pra dizer a verdade, mas certo de que era o melhor a fazer. O maestro saberia dar melhor serventia ao instrumento. O Daniel, infelizmente, resolveu “enterrar” o seu talento musical e, conforme a parábola, não fez uso do dom que Deus lhe deu. Paciência, ele possui muitos outros.
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B.Hte., 01/05/10
OBS.:- Em homenagem ao meu filho caçula Daniel.