CARTA ABERTA A VANDETE (MULHERES E MAEZINHAS)
Os cheiros eram diferentes mãe, o cheiro do òleo de Peroba nas camas faixa azul do nosso quarto, o cheiro da sopa, o cheiro da manteiga e do café tudo feito em figão de barro à carvão. O cheiro de casa limpa justo a hora do Angelis, quando nós, eu e meu irmão, voltávamos abalados emocionalmente do matinée do Cine Ideial. Era fim de domingo, fim do fim de semana. Não tinha novalas no rádio, tinha músicas certamente de emilinha e Dalva de Oliveira, mãe entra no nosso quarto para ver se estávamos bem, enrolados em cobertores bordados por ela com nosso nome, fronha do mesmo tecido e também individualizada, mosquiteiros postos e arrumado por baixo dos colçhões de capim seco, mesinha com a imagem de N.S. das Graças e São josé, a Espiral Sentinela acesa e quimando vagarosamente. Trazia um Puf da sala de estar, sentava e começava a nos contar uma história absurda infantil sôbre Marcelino Pão e Vinho, Domingos Sávio etc. não sem antes perguntar se rezamos o Pai Nosso, a Ave Maria e Santa Maria, antes de deitarmos. Era no Domingo que a tínhamos para nós, maezinha, pois a semana inteira voce ia a luta, para crescer tá certo, mas esse argumento não escondia que a verdade era mais funda, trabalhava e estudava encompridando o dia em 16 horas na atividade, para não nos deixar faltar nada. Meu Avô era um sapateiro de encomendas, minha avó tomava conta de tudo mais,casa, finanças, estoque, consumo, criação do dia a dia, levar e trazer os netos das duas escolas nos dois horários, castigar, tomar lições, e muita conversa explicativa carinhosa de uma mãe dupla, claro que sempre com os dogmas da época, de educação sexual nem pensar, brincar com outras crianças na rua nem ver. Dormir depois das sete só em casos especiais como nas crises de vesícula de minha mãe.
Estas Duas Mulheres Vandete e Etelvina fizeram meu e de meu irmão, um caráter um pouco diferente, tendo mesmo meu avô como representante masculino, não notei e nem precisei de um Pai. Nunca, se ele nos abondonou, já foi tarde, foi e com isso deixou claro a força feminina destas duas representantes das mulheres no mundo. Tá claro aquí que não quero menospresar a representação de Meu Avô Agenor (mesmo que coloquei em meu filho mais novo), Era a força e a última palavra, o mestre bondoso e calado, distante como a mostrar que naquela casa, a força ativa era feminina. Ele como nós eramos dependentes destes cuidados e atividades delas.
Vandete em luta perpétua lá fora, sempre com mais de um emprego, e mais de uma escola, formando-se em história, também estava com cursos de culinária e corte e costura, estenografia e telegrafia, era secretária numa construtora, auxiliar de contabilidade em duas outras empresas ainda dentro das 24 horas de um dia. Depois foi pior passou no concurso dos ECT, Correios de hoje, ficou em dois empregos pela manhã, ia direto para a agência dos correios, depois para os cursos e depois ia lecionar numa cidade próxima de Maceió. História claro (de quem achas que pequei o vírus da curiosidade história e de pesquisas?). Esta luta teve como prêmio uma estafa que a levou em cadeiras de rodas para o Hospital de servidores do rio de Janeiro, onde em se tratando, ficou também trabalhando, sempre assim, não parava nunca, mesmo tido como incapacitada.
Etelvina deu Boa Noite a Cid Moreira, levantou-se com dificuldade da cadeira de balanço, tomeu seu café noturno e foi para cama, dormir para não mais acordar. Seu Agenor não aguentou e calado sofreu, indofazer companhia a sua amada querida eterna namorada das noites em cadeiras na porta de casa, também se foi. O Sofrimento de sua hora de partida não se comparava ao sofrimento da separação de mais de 60 anos de casamento. Foi-se feliz ao encontro de Etelvina. De braços dados Ela suspirou para o mais velho dos netos que certamente dormia em algum lugar de Paulo Afonso-Ba. Bem querido Zé, agora é com voce, fizemos nossa parte e tenho orgulho do que nossa família se tornou. Até mais tarde por aquí meu neto mais querido. Obs.: Olhe pela Vanda, a coitada troca muito trabalho pela falta de quereres, é sua sina meu neto.
Vandete voce está num estadoque não me compreenderá, e nem lerá estas palavras, não com a mente corroída por esta doença maldita. Voce quase que não me reconheçe, no meu lugar está Vanilda a melhor filha que Deus te deu para compensar tanta dedicação e amor aos seus filhos. Mas seu espírito sofredor está em atividade e saberá que eu não esquecí e que a amo demais.
O principal é que entre as névoas deste amor filial está uma lição de vida infinita de amor a sua prole ao ponto crítico de quase se anular para que seus filhos ficasse acima da linha dágua. Sofreu todas as desventuras físicas de doenças sem fim, e espirituais de ser uma corajosa mulher desquitada no tempo em que isso era raparigagem certa e preconceito infinito. Duro andar sendo observada e falada sem nada ter feito, duro se preservar para não envolver seus filhos, duro ser mulher e ser celibatária não por opção, mais por convenção. Duro maezinha se ver queimada internamente e desafogar em lágrimas indo desaguar em doenças de cunho nervoso dependente de uma mulher saudável e ativa sexualmente, sendo intensamente reprimida.
Hoje Maezinha vejo sua face rosada ainda preservando resquícios de sorrisos meigo eterno, olhos brilhante ao me reconhecer e apagados em seguida me perguntando quem é voce? Minhas lágrimas vê seus cabelos brancos e ralos, sua pela sensível demais e macia, sua voz que parece uma ressonancia cavernosa de um espírito alegre e vibrante, mesmo em estado de repressão pela moralidade da época. Inda com seu rosário entre as mãos e sempre a recitar preces a Deus. Preces milagrosamente conservadas num cérebro que se queima sozinho numa velocidade espantosa, afugentando a personalidade daquela heroina, para longe, cinzas de memória saem em suas palavras.
Mas sei que em algum lugar estas, dentro deste cérebro em decomposição em vida, estás em algum lugar. Vida que não é vida, não entendes o que é o agora, nem sabes o que foi ontem, não tens ideiaque será amanhã. Nem animal mais rústico tem esta cruz.
Seu corpo acostumado a luta quotidiana, se recusa a envergar e se render, mas a doença vai paralisá-lo usando a respiração como adaga, pois quando a célula que controla isso se quimar também, fatalmente o corpo finalmente descansará.
Minha heroína, fica aquí entre lágrimas de reconhecimento, a Voces duas, lutadoras que mostram para mim que o mundo escuro e masculino, precisa urgentemente de mulheres femininas e iluminadas, que tenham vossa garra, vosso saber perdoar e esquecer, vossa determinação, sem tréguas, sem baixar a cabeça, avante e radiosa, serão perenes, serão eternas. Humanidade façam reverência a estas mulheres que fazem o mundo continuar a girar mesmo e além do egóismo e da maldade.
Obrigado minhas maezinhas.