A Rubem Alves - 43 -
O jardim secreto
Estou tentando entender como foi que o boato começou.Começou,espalhou,foi confirmado,acabou virando fato.Quando desligo me olham com olhares incrédulos.São aqueles pacientes que vêm para a terapia...
( Tenho aqui de abrir parênteses para dar explicações,pois usei palavra que a ortodoxia proíbe. Eu não deveria ter falado "terapia" ,mas sim análise,como fazia o analista de Bagé.Alegam que "análise" é conceito científico,método rigoroso empregado por pesquisadores que trabalham em labotatórios-settings assépticos.Pois é isso mesmo que eles alegam estar fazendo: reduzindo as venenosas poções neuróticas e psicóticas que enlouquecem as pessoas aos seus elementos simples,com a objetividade própria do saber acadêmico.
"Terapia",ao contrário,é palavra modesta a que falta tal dignidade.Em grego o therapeutés é um "serviçal". O verbo therapeuein quer dizer "cuidar","tomar conta",como se cuida de um jardim,como se toma conta de uma criança.A análise pertence ao universo do saber.A terapia pertence ao universo da compaixão.)
... com precisas expectativas sobre aquilo que os aguarda.Esperam que o terapeuta os conduzirá,como Dante,pelos horrores do Inferno e os terrores do Purgatório,pois é isto que se alega existir dentro do tal Inconsciente sobre o qual já ouviram falar,mas desconhecem totalmente.Esta expectativa,preliminar à aventura do autoconhecimento,pressupõe que o viajante acredite que o território a ser visitado,de nome " Inconsciente",é uma espécie de campo de concentração de coisas horrendas,repulsivas,repelentes,reprováveis,feias,malcheirosas,asquerosas,amedrontadoras,tais como Bosch,Dali e Munch pintaram em suas telas.
Examinando as telas de Bosch surpreendeu-me a semelhança que existe entre o inconsciente cristão e o inconsciente psicanalítico: os dois são,igualmente , infernais. " Deixai toda a esperança,vós que entrais" - estava escrito na porta do Inferno,segundo Dante.Haverá algo mais enlouquecedor que tal afirmação?
Essa idéia não é encontrada no Antigo Testamento.A alma humana é ali pintada com grande suavidade.O livro de Eclesiastes,inclusive,muito se assemelha ao taoísmo: não há vinganças a serem executadas nem culpas a serem expiadas.
O inconsciente sinistro é coisa da teologia das igrejas cristãs,bem exemplificada nos inquisidores dominicanos e nos teólogos calvinistas.Para eles,virtude e pureza não passam de mentiras,disfarces de superfície que precisam ser desmascarados para que as fezes e urinas kleinianas que enchem a alma revelem-se.Dizem os calvinistas : somos,por natureza,totalmente depravados.Em nós não existe grãozinho de bondade.No fundo está sempre a oficina do Demônio.Não admira,portanto,que os inquisidores tivessem de se valer do fogo, e que nós mesmos tivéssemos de construir,dentro do corpo,a tal prisão de pedra e ferro chamada Inconsciente,para ali aprisionar as feras.Blake disse o seguinte dos sacerdotes: "como a lagarta que procura as folhas mais bonitas para nelas colocar os seus ovos,assim o sacerdote coloca suas maldições em nossas alegrias mais bonitas." Bachelard disse algo parecido do psicanalista.Segundo ele, o psicanalista é aquela pessoa que ao ver uma flor,pergunta logo: "onde está o estrume?" Técnica própria do confessionário.O confessor suspeitaria logo de um peninente que só falasse sobre o jardim.Ele logo lhe perguntaria: " E nesse lindo jardim,que torpezas você cometeu?"
A Igreja conheceu o Inconsciente através do pecado.
A psicanálise conheceu o Inconsciente através da neurose e da psicose.
Mas há um outro jeito: o dos poetas. Os poetas conheceram o Inconsciente através da Beleza. Para eles, no centro do inconsciente está um jardim. Alguém o fechou,é bem verdade. A chave se perdeu.Mas ele pode ser aberto.E é isto que Bachelard proclama,inspirado nos desenhos de Chagall: " O universo - os desenhos de Chagall o provam - tem, para além de todas as misérias,um destino de felicidade.O homem deve reencontrar o paraíso."
Essa lição é velha.Diotima, a sacerdotiza que iniciou Sócrates nos segredos do amor,dizia-lhe que todos os homens estão grávidos de Beleza.Mais cedo ou mais tarde esta Beleza quererá nascer.Mora em nós uma Bela Adormecida,como na história infantil e no poema Eros e psiquê, do Fernando Pessoa.Bachelard,que contemplava o inconsciente( sim,contemplar! O inconsciente é um cenário silencioso,oferecido aos olhos encantados!) tal como ele se revela sob a luz de uma vela,concluía; "Quem confiar nas fantasias da pequena luz descobrirá esta verdade psicológica: o inconsciente tranquilo,sem pesadelos, em equilíbrio com sua fantasia,é exatamante o claro-escuro do psiquismo,ou melhor ainda, o psiquismo do claro-escuro.Imagens da pequena luz nos ensinam a gostar desse claro-escuro da visão íntima" - o inconsciente é uma tela de um mestre flamengo.
Ateliê de artista,foi nele que nasceram as sonatas de Beethoven,as telas de Monet,as esculturas de Michelangelo,os poemas de Fernando Pessoa, o canto gregoriano, as histórias de fadas,os mitos religiosos.Nele também se fabricam brinquedos,risos e alegrias.Lugar de figuras encantadas,ali estão,como nos sonhos,os gnomos, a Terra do Nunca,os palhaços,O menino Jesus de Alberto Caeiro e o monstro brincalhão de Nietzsche.
Mas alguém terá que servir de parteiro!
Alguém dará o beijo que quebrará o feitiço!
Alguém abrirá o jardim com uma chave mágica!
Tudo isto que eu tentei dizer está dito e visto no filme O jardim Secreto.Trata-se de uma alegoria sobre os caminhos do corpo e da alma: de como a Beleza triunfa sobre a Morte. Sendo uma alegoria, a história que ele conta é,ao mesmo tempo, a nossa própria história.Você se verá refletido nele como Narciso se via refletido na fonte.Há,dentro de cada num de nós,um "jardim secreto",fechado,que precisa ser aberto.O terapeuta,serviçal,é o jardineiro.Tem a obrigação de cuidar do jardim.Arrancar os matos e pragas,por causa das flores.Terapia é isso: visitar o jardim secreto,até que se encontre a chave perdida.
Rubem Alves in Sobre o tempo e a eternidade - Ed. Papirus - 2002
_ Hoje minha,para sempre, terapeuta faz aniversário.Há 3 anos tivemos nossa última sessão mas não o sabíamos.Não nos despedimos.Eu viajei e não voltei. O jardim ,que descubro a cada dia ,dentro de mim,foi ela quem me entregou a chave. E ela terá minha gratidão.Para sempre.
Maria Neusa em 15 de abril de 2010