PETRÓLEO

Ordináriamente não era assim. Porém servia-se da sua veia humorística muito estudadamente, de acordo com as circunstâncias.

Naquela noite, por exemplo, entrara em sua sala um novato. Um novato interessante, completamente diferente dos outros.

Godofredo era baixote, gordo, meio calvo, trazendo na cara larga um par de óculos de grossas lentes, os quais escondiam uns olhinhos miúdos e espertos.

Fulgêncio observou-o minuciosamente. Descobriu nele o palhaço das suas anedotas, sua distração favorita. Gozado ao extremo esse Godofredo. Até na fala. E Fulgêncio passou a estudá-lo.

Gravou na memória seus gestos arrebatadores, seu nervosismo e gagueira infalíveis quando abordado pelo professor. Até na voz Fulgêncio o fisgou. E quando, no recreio, no aglomerado de estudantes, alguém gesticulava e falava com voz rouca e fanhosa não era Godofredo, mas sim Fulgêncio, imitando-o.

Imitava perfeitamente o colega para delírio dos outros companheiros. E uma variedade de risos enchia todo o páteo do colégio quando Fulgêncio arremedava o novato. Risos estridentes, desafinados, contagiantes, debochados.

O pobre do Godofredo de nada suspeitava. Fulgêncio aparentava ser seu amigo. E o era. Intimamente Fulgêncio o admirava, pois suas qualidades morais e intelectuais eram sobejamente conhecidas de todos no colégio.

Mas o seu físico ... Era esse o fraco do Godofredo. E Fulgêncio divertia-se em gozar o colega. Não que ele fizesse aquilo procurando ridicularizar o amigo. Era, antes, um gozador nato, incorrigível. E portanto não agüentava ver (e depois ficar quieto) o Godofredo nos momentos característicos da sua personalidade.

O episódio do Grêmio era por demais reclamado pelos seus companheiros para a “reprise”. E mais de uma vez Fulgêncio levantava-se do banco, no meio da rodinha, estufava o peito, franzia o sobrolho, raspava a garganta e, balançando-se nos calcanhares (atitude peculiar de Godofredo) imitava o colega numa das suas palestras no Grêmio:-

“- Eu também sou pelo monopólio estatal do petróleo! ...”

Sim, falavam dos problemas do petróleo nacional naquela reunião. Não se negavam “quás” à perícia do exímio Fulgêncio em arremedar Godofredo.

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O tempo corria lépido, sem se importar com o calendário. O fim do ano se aproximava apavorante para os estudantes vadios, os apáticos e (por que não?) também para os “duques”, os “Caxias”, os “CDF” como eram chamados pelos colegas os alunos assíduos, atenciosos, esforçados.

Fulgêncio, sem tempo quase para imitar Godofredo, lutava para gravar mais e mais na memória as explicações, as aulas e os ensinamentos ministrados durante o ano.

Foi quando, numa noite morna de quarta-feira, em que o professor de Português empurrava a sua aula monótona e cacete de gramática, a notícia correu de boca em boca, nervosamente:- Godofredo iria sair do colégio! Chegara-se ao professor Coelho, um dos seus maiores admiradores, e comunicara-lhe a novidade. Este, visivelmente desconsolado, dirigiu-se à turma:-

“- Senhores, quero que dois alunos se encarreguem de fazer um trabalho, uma pequena homenagem de despedida ao nosso colega Godofredo, o qual vai mudar de colégio. Virá amanhã pela última vez e, como temos aula também, eu ficaria imensamente satisfeito se lhe prestássemos um modesto, simples mas sincero e carinhoso preito.”

A classe ouvia atenta as palavras do professor. Este, fazendo uma pequena pausa, continuou logo após:-

“- Escolherei um aluno para fazer um trabalho e pedirei que um outro se apresente, como voluntário, para fazer o segundo. Quem está disposto?”

Silêncio geral. Ninguém disse nada. Apenas olhares furtivos, uns para os outros, varreram os quatro cantos da sala. Foi aí que Fulgêncio, entre sussurros e cochichos dos colegas, se levantou da carteira e disse:-

“- Mestre, eu posso fazer o segundo trabalho!”

“- Muito bem, muito bem!” , aplaudiu o professor. E logo encarregou o Itamar de preparar o primeiro.

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“- Caro mestre, prezados colegas, amigo Godofredo:-

Surpreendeu-nos a notícia da sua transferência, naturalmente por motivos imperiosos. Neste curto espaço de tempo, a sua convivência entre nós deixou um marco profundo da sua personalidade brilhante, da sua grande inteligência, dos seus invejáveis predicados. Sentiremos a sua falta, prezado amigo. Sentiremos a falta do “vanguardeiro dos nossos interessses”, como você mesmo o disse. Nas reuniões do nosso Grêmio, notória será a ausência do colega Godofredo, o rapaz que debate sobre qualquer tema, sobre quaisquer assuntos, sempre pronto a colaborar com os seus preciosos conhecimentos.

Pois bem, Godofredo, desejamos de coração que continue a brilhar, a impressionar, como aqui fez. Em nome dos meus colegas e em meu próprio, cumprimento-o, augurando-lhe os mais sinceros votos de felicidade, de êxito constante. Quero apresentar-lhe as nossas despedidas, porém o teremos sempre em mente. Porque um dia, ainda que tarde, o veremos certamente entre as grandes figuras deste nosso imenso Brasil!...”

Uma ruidosa salva de palmas sacudiu todo o estabelecimento. Saiu pela porta da sala, ganhou as outras, o páteo, a secretaria, o gabinete do Diretor, todas as dependências do colégio, num reboliço geral.

Fulgêncio, corado e serio pela primeira vez na vida, caminhou para Godofredo que, comovido, o esperava de braços abertos. Afinal, ele era amigo de Godofredo e valera-se da oportunidade para expressar ao companheiro, como à turma, a sua amizade pura e sincera, despida dos zombeteiros arremedos tão bem perpetrados . Não era própriamente sua culpa de agia daquele modo:- era a sua impagável veia humorística. Ela podia perder o amigo, mas não perdia a piada.

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B.Hte., 1958

OBS:- Homenagem ao colega Ovídio, do Colégio Municipal de Belo Horizonte.

RobertoRego
Enviado por RobertoRego em 04/03/2010
Código do texto: T2118777
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