Tudo outra vez...
Falem o que quiser, não importa pra mim! Ninguém mais cantou tão bem a latinidade americana do que o cearense Belchior, fosse em “Apenas um rapaz latino- americano”, “A palo seco” ou na inesquecível “Tudo outra vez”, que, aliás, sempre me faz chorar quando ouço, por lembrar dos becos, esquinas, ruas e grandes avenidas do mundo que andei e continuo andando nesta busca desesperada por pão, água e cultura.
Antonio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes, ou simplesmente Belchior, nasceu no sertão árido e cruel cearense, na cidade de Sobral em 26 de outubro de 1946 e foi um dos primeiros cantores e compositores nordestinos a fazer sucesso ainda no início da inesquecível década de 70, mas antes, ainda na infância, foi cantor, repentista e poeta. No extenso currículo artístico consta que estudou música em coral e tocou piano; foi programador de rádio e estudante de medicina, acreditem!
Já morando em Fortaleza abandonou a medicina e começou a dedicar-se integralmente a música. Passou a integrar grupos jovens e na mesma época conheceu gente do quilate de Fagner e Ednardo, dentre outros, que por aquelas bandas nordestinas eram conhecidos como “O pessoal do Ceará”. Em cinco anos, entre 1965 e 1970, ele e seus amigos se apresentaram em vários festivais de música; tentou tanto emplacar que em 1971, quando já morava no Rio de Janeiro, ganhou um destes festivais de MPB com a música “Na hora do almoço”.
Com a vida ainda muito dura para todos ligados aos movimentos artísticos, mudou-se para São Paulo e tentou outros trabalhos, inclusive, fez algumas canções para filmes. Em 1972, a “pimentinha” Elis Regina gravou uma de suas músicas, “Mucuripe”, juntamente com Fagner; depois disso Belchior nunca mais seria o mesmo, o sucesso e a fama lhe bateriam sempre a porta e lhe perseguiria até os dias atuais.
Quem tem menos de 40 anos, provavelmente conheça pouco, as canções deste cearense de voz aveludada e timbre marcante; seus versos embalaram gerações de poetas, novos boêmios, intelectuais, estudantes dos movimentos de esquerda, enfim, as músicas de Belchior deixaram marcas profundas entre os anos 70 e 80; somente no final da década de 90 é que a febre de suas letras marcantes e perspicazes deixou os topos das paradas de sucesso, mas até hoje elas ainda têm um espaço reservado na programação de muitas rádios.
Belchior foi parando aos poucos a sua exibição pública, mas a mídia não lhe deixou em paz; em 2009 a Rede Globo iniciou uma investigação para saber “onde estava Belchior”. Muitas cidades brasileiras receberam os repórteres da emissora para tentarem mostrar ao seu grande público o paradeiro daquele que marcou diversas gerações, mas foi no Uruguai, no interior do país que ele foi encontrado morando numa casa confortável em companhia de uma nova consorte.
Belchior de início relutou em dar explicações para a mídia, mas aos poucos foi cedendo e explicou-se de modo enfático que estava preparando um novo trabalho, sem data certa para ser conhecido. Segundo o cantor, ele resolveu mudar radicalmente de vida e como não tinha que dar satisfações de sua vida pessoal, mudou-se para o bucólico Uruguai, em busca de paz, sossego, qualidade de vida e inspiração.
Na discografia de Belchior se conta catorze trabalhos de muito sucesso; o último trabalho inédito dele foi publicado em 1999, “Alucinação”; depois disso, dezenas de reedições foram lançadas, mas as melodias marcantes já contam 11 anos de ausência.
Na lista de curiosidades que reúne Belchior, na música mais famosa de Fagner, “Canteiros”, há trechos da primeira música de Belchior “Na hora do almoço”. “Velha roupa colorida” e “Como nossos pais”, grandes sucessos de Elis Regina também são de Belchior. Os Mamonas Assassinas, pouco antes de morrerem em 1995 satirizou o jeito vocal de Belchior na música “Uma Arlinda mulher” e por final, o cantor comediante Falcão, também cearense, mandou bala em “Divina comédia humana” quando apresentou a sua música "As bonitas que me perdoem, mas a feiúra é de lascar" com o trecho "Um analista amigo meu me disse desse jeito não vou viver satisfeito".
Eu como fã incondicional de Belchior, não poderia me refutar de homenageá-lo enquanto vida ele possui, reiterando que precisamos homenagear os que estão vivos, porque depois de mortos, eles não precisam mais de tributos e vassalagens; escolhi alguns trechos de suas músicas para que todos observem como ainda são tão atuais.
Em “Todo sujo de batom”: “Eu estou muito cansado do peso da minha cabeça, desses dez anos passados, presentes vividos entre o sonho e o som. Eu estou muito cansado de não poder falar palavra sobre essas coisas sem jeito que eu trago no peito e que eu acho tão bom.”
Em “Fotografia 3X4”, a música inteira é uma obra prima raríssima de se ver ou escutar, mas este verso, para mim é inigualável: “Eu me lembro muito bem do dia em que eu cheguei jovem que desce do norte pra cidade grande; os pés cansados e feridos de andar légua tirana. Vi lágrima nos olhos de ler o Pessoa e de ver o verde da cana. Em cada esquina que eu passava um guarda me parava, pedia os meus documentos e depois sorria, examinando o três por quatro da fotografia e estranhando o nome do lugar de onde eu vinha. Pois o que pesa no norte, pela lei da gravidade, disso Newton já sabia! Cai no sul, grande cidade, São Paulo violento, corre o rio que me engana.”
Eu que também vim do interior do Nordeste e vivi em tantas grandes cidades, não posso jamais esquecer as músicas de Belchior; cada uma delas fala de amor, de América Latina e de sua própria vida sofrida nos recantos do Brasil. “Fotografia 3X4” é toda história de cada pessoa que deixa sua terra natal para aventurar-se em terras estranhas, muitas vezes sem eira nem beira, sem rumo, sem destino, como se apanhasse um trem que risca trilhos e só para na estação solidão!
“Copacabana, zona norte e os cabarés da Lapa onde eu morei; mesmo vivendo assim, não me esqueci de amar, que o homem é pra mulher e o coração pra gente dar, mas a mulher, a mulher que eu amei não pode me seguir não. Esses casos de família e de dinheiro eu nunca entendi bem. Veloso o sol não é tão bonito pra quem vem do norte e vai viver na rua, a noite fria me ensinou a amar mais o meu dia e pela dor eu descobri o poder da alegria e a certeza de que tenho coisas novas, coisas novas pra dizer, a minha história é, talvez, é talvez igual a tua; jovem que desceu do norte que no sul viveu na rua e que ficou desnorteado, como é comum no seu tempo e que ficou desapontado, como é comum no seu tempo, e que ficou apaixonado e violento como, como você! Eu sou como você. Eu sou como você. Eu sou como você que me ouve agora. Eu sou como você!”
Eu poderia ficar reescrevendo todas as noventa e nove músicas mais sensíveis; poderia ficar aqui relatando o que cada uma delas significa em minha vida; poderia descrever pelas letras de Belchior a minha Feira de Santana, minha Bahia, meus pais, meus irmãos, filhos e até minha esposa, mas como ele mesmo afirma, ele é como você, como eu, enfim, Belchior cantou aquilo em que cada um pode plenamente se colocar na própria canção. Pensando assim, encerro esta singela homenagem reescrevendo aquela que sou eu, a música que mais se parece com o “Imperador” Carlos Henrique, o homem que por foram tem uma casca indestrutível e impenetrável, mas que esconde uma sensibilidade que às vezes assusta a mim próprio; a minha música preferida é “Tudo outra vez” e cada vez que ela tocar, me fará viajar desde a década de 70, passando por várias décadas até chegar aqui, hoje e me projetar para uma viagem de mais alguns anos no futuro.
Ouvindo “Tudo outra vez” eu vejo Belchior, “Como nossos pais”, que teve “Medo de avião”, “Alucinação”, “Coração selvagem”; viu as “Paralelas” e a “Divina comédia humana”:
Há tempo, muito tempo que eu estou longe de casa e nessas ilhas cheias de distância o meu blusão de couro se estragou.
Ouvi dizer num papo da rapaziada que aquele amigo que embarcou comigo, cheio de esperança e fé já se mandou.
Sentado à beira do caminho prá pedir carona, tenho falado à mulher companheira, quem sabe lá no trópico a vida esteja a mil...
E um cara que transava à noite no "Danúbio azul", me disse que faz sol na América do Sul e nossas irmãs nos esperam no coração do Brasil...
Minha rede branca, meu cachorro ligeiro, sertão, olha o Concorde que vem vindo do estrangeiro; o fim do termo "saudade" como o charme brasileiro de alguém sozinho a cismar...
Gente de minha rua, como eu andei distante, quando eu desapareci, ela arranjou um amante; minha normalista linda ainda sou estudante da vida que eu quero dar...
Até parece que foi ontem minha mocidade com diploma de sofrer de outra Universidade, minha fala nordestina, quero esquecer o francês...
E vou viver as coisas novas que também são boas, o amor, humor das praças cheias de pessoas, agora eu quero tudo, tudo outra vez...!
Espero ouvir muito Belchior e me apaixonar mais e mais por suas letras e suas melodias!
Carlos Henrique Mascarenhas Pires
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