O CRAVO AMASSADO
Sábado, vinte horas e vinte e dois minutos. Quase todos saíram, a casa finalmente silenciosa. Trancado em meu quarto, repousava estendido na cama. Os olhos semicerrados, o pensamento voava, percorrendo terras estranhas, lugares distantes.
Um espirro trouxe-me à realidade e apagou o sonho repentino. Estava resfriado. E muito. Lembro-me que ontem tentara cantar. Decepção. Simplesmente horrível. A voz saíra-me fanhosa, a garganta não ajudava. Desisti logo do intento. O mano Rubinho guardara o violão.
Sim, eu quisera cantar, desabafar em forma de sons os meus sofrimentos. Bobagem. Impossível. Sua extensão jamais caberia num canto, nunca seria representada em notas musicais, por mais tristes e amargas que fossem. Pegara, então, um livro a fim de distrair-me. Você viaja através de um livro.
Agora, novamente, a solidão me atormenta. Mesmo sabendo que daqui a dois dias, Maria, estarás comigo. Como se fossem dois longos anos...
Ergui-me, fui ao guarda-roupa. Rebuscando paletós eu encontrei uma flor meio amarelecida pelo tempo, já quase sem perfume, num bolso esquecido da roupa.
Era um cravo branco que um dia me deste, Maria. Talvez não te lembras mais da oferta singela. Eu, porém, recordo-me de tudo. Guardo-o comigo desde aquele instante alegre. Obrigado, Maria. Eternamente obrigado, meu amor!
Interrompi este escrito singelo, fitei com ternura a flor, apertei-a de encontro ao peito, carinhoso, o pensamento fixo em ti, Maria.
O cravo transmitiu-me algo, já não consigo mais raciocinar. O cérebro, todo o meu ser esquisito, vendo tua imagem na parede, na estante, nos livros, no papel desta página, na flor amarela e ressequida.
Maria Mari, eu sou como o cravo branco, ressequido e sem perfume. Preciso da tua mágica presença, do teu afago, do teu carinho, para de novo desabrochar radiante, emanando o inebriante aroma do nosso amor! ...
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B.Hte., 23/01/60