Doutor Sandro!

Hoje em dia diriam que ele era um “garoto esperto” ...

Tive a satisfação de conhecê-lo nos anos 70, quando realizávamos trabalho em uma mesma autarquia estadual!

Naquele ambiente austero, onde a média de idade girava em torno dos 35 anos, aquele garoto com pouco mais de 20 se destacava e não se importava de ser tachado de contestador, rebelde, etc pelos demais componentes do local e, muito pelo contrário fazia questão de a cada participação, em cada novo dia, mostrar-se mais e mais “diferenciado” dos padrões de conduta que ali norteavam.

Com palavrear avançado para a época, onde se sobressaiam os palavrões nas conversas descontraídas com seus “camaradas”, transmitia um carisma e um senso de amizade que a todos cativava.

Ousava também bastante na forma de se vestir, utilizando cores e modelos não muito convencionais, principalmente para os ditos machões, que se horrorizavam com a ousadia do “menino”.

Isso de alguma forma se explicava, pois, recém ingresso em uma universidade pública, pertencia à nata dos estudantes que ditavam os modos, a moda, o linguajar, os procedimentos em geral da década!

Como é comum nos ambientes escolares, de trabalho, esportivos ... sempre há alguns que são mais “chegados” e estabelecem um grau de amizade um pouco mais apurada. No caso específico deste “nosso amigo”, sua afinidade recaiu sobre um nosso amigão “GENTE FINA”, bem mais velho do que o garoto, mas que era muito popular e com o seu jeito “bonachão” aceitava e retribuía todas as brincadeiras desinibidoras que surgiam pelo ambiente.

Existiam profissionais qualificados prestando serviços na instituição, em sua grande maioria, formados em cursos superiores que eram admitidos como estagiários e iam galgando posições dependendo de seu grau de desenvolvimento em seus trabalhos.

Este contingente de colaboradores era “dividido” em digitadores, operadores, programadores, analistas e supervisores, todos “capitaneados por um gerente geral!

Nosso “herói”, calouro no curso de Odontologia na USP, havia ingressado como estagiário em operação de computador, para como ele mesmo enfatizava com muita personalidade: Segurar a barra durante algum tempo, até que ele tivesse autonomia para começar a exercer sua profissão, na qual, sem sombra de dúvida ficaria rico!

O amigão GENTE FINA havia sido admitido como programador “direto”, sem necessidade de passar pelo estágio de estagiário, haja vista possuir experiência na função em trabalhos desenvolvidos em outras empresas. Estava cursando superior na PUC e vivia sendo zoado pela rapaziada que vivia repetindo: Viram como o Pietro resolveu fácil aquela questão apresentada? Também pudera, foi na PUC que caiu!

Em seu organograma, a autarquia era dividida em grupos constituídos por um supervisor, programadores e analistas. Estes grupos atuavam cada qual executando trabalhos que iam de encontro às necessidades da instituição. Havia o Grupo Administrativo, supervisionado por um experiente analista sênior chamado Robert e era justamente neste grupo que figurava o extrovertido Pietro!; Havia o Grupo de Suporte Científico, “capitaneado” por um educadérrimo analista sênior chamado Antony; Um grupo de Software, encarregado de sanar os problemas surgidos na utilização dos recursos de máquina e produtos necessários para um bom desenvolvimento das atividades, no qual figuravam os operadores de computador e os digitadores e, por conseqüência, tinha “enquadrado” em seu meio nosso jovem “contestador”, sendo liderado por uma doutora analista sênior chamada Eunice, e, um Grupo de mecanização da biblioteca, haja vista que em se tratando de um instituto de pesquisa que retinha em seus quadros vários pesquisadores nacionais e até internacionais, primava em ter uma biblioteca sempre “sortida” de informações técnico/cientificas e com forma simples e precisa de recuperação. E era neste grupo que eu figurava, sob a supervisão de uma mestranda analista sênior chamada Claudete.

Aliado a estes grupos, havia um outro grupo de suporte aos pesquisadores, “capitaneado” por uma outra doutora chamada Marlucce. Este grupo se encarregava de auxiliar os pesquisadores do instituto em suas pesquisas, lhes dando respaldo suficiente para que conseguissem seus resultados de uma forma precisa e rápida!

Nosso extrovertido e contestador garoto era um “tormento” para a educada e comedida supervisora Eunice. Com seu jeito “desbocado” e contestador vivia sendo repreendido, não só pelo seu “chefe imediato” de nome Savério como também pela educadérrima e competente supervisora Eunice!

Houve inúmeras demonstrações de aparente “rebeldia” efetuadas pelo aspirante a doutor ...

Como casos “carimbados” houve o caso em que foi trabalhar com um tamanco, ornamento da época de uso exclusivo do sexo feminino. Foi um “frisson” total no ambiente de trabalho ... Em outra ocasião, como vivia brincando com seu grande amigo Pietro, especialmente em relação à diferença de idade existente entre eles, sendo que o chamava constantemente de “veia louca”, fazendo uma combinação de elemento não muito másculo (o que efetivamente não condizia com a realidade, haja vista o considerado Pietro viver “assediando” as moçoilas disponíveis ...) com um estado de destempero (o que também não condizia com a realidade ...).

Como seus horários de almoço coincidiam, era de praxe se deslocarem para o restaurante do instituto sempre juntos.

Em uma destas ocasiões, ao chegar o horário que deveriam dirigir-se ao restaurante e notando o atraso de seu fiel amigo, nosso “herói” não se fez de rogado. Aproveitando que o teclado da console no qual os operadores (no caso específico do instituto, somente manuseado pelo Savério e por alguns operadores mais experiente que ele designava ...) executavam tarefas de administração dos serviços executados no computador central, resolveu enviar uma mensagem para o amigão: Entrou na opção de envio de mensagens e tascou: “E aí, veia louca! Vai almoçar ou não?”.

Somente que, sem muita experiência no manuseio deste tipo de serviço, não se deu conta de deveria direcionar esta sua mensagem diretamente para o Pietro e esta sua mensagem foi enviada para todos os terminais que estavam ativos naquele momento, inclusive para a supervisora Eunice que, via de regra, dirigia-se para almoço após todos já haver saído, período no qual aproveitava para efetuar alguns registros pendentes!

Alheio à mancada que havia dado, o garoto dirigiu-se até o local onde Pietro executava suas funções e já o encontrou “a meio caminho” para encontrá-lo e irem para o restaurante. Com as costumeiras brincadeiras e pilhérias, dirigiram-se ao local da refeição onde se juntaram a outros companheiros de trabalho, efetuando suas refeições em ambiente descontraído e de muita camaradagem.

Como faziam cotidianamente, após o almoço dirigiram-se para um local aprazível sobre algumas árvores estrategicamente colocadas visando exatamente disponibilizar um local para descanso e para os fumantes dos colaboradores, onde prosseguiram com suas galhofas que proporcionavam muitas risadas e tiradas com muito bom humor.

Mal retornou ao seu local de trabalho, foi comunicado pelo Savério que a Eunice havia solicitado o seu comparecimento urgente até sua sala que ela queria ter uma conversa com ele. Imediatamente, sem mesmo fazer sua higiene bucal, o garoto dirigiu-se até a sala de sua “chefa”, como ele costuma dizer, lucrubando sobre qual seria o teor da conversa que a mesma queria ter consigo. Será que a esperada promoção para operador júnior com a conseqüente contratação pelo instituto finalmente se efetivaria. Já estava cansado de ser estagiário e tinha certeza de que já estava totalmente preparado para assumir até uma posição melhor do que a de júnior ...

Logo que chegou à sala da supervisora, educadamente bateu à porta, pediu licença e adentrou ao recinto. A “balzaquiana” mestra Eunice que se encontrava sentada folheando alguns manuscritos, olhou por sobre os óculos e, de imediato indagou sobre a mensagem que havia recebido um pouco antes do almoço vinda da console do “aquário da operação”.

Foi como se um raio houvesse caído sobre a cabeça do extrovertido “menino”. Sem a segurança e extrovertimento que lhe eram peculiares, gaguejou tentando uma justificativa sem muita convicção.

A “chefa” solicitou que se sentasse em uma cadeira postada em frente à sua mesa e iniciou um sermão que para ele durou como se fosse uma eternidade. Disse-lhe que além dele haver extrapolado ao fazer uso de um mecanismo para o qual não estava devidamente preparado, o havia utilizado para efetuar brincadeiras, o que não era bem o escopo que justificava sua presença por lá. Ela argüiu que até prezava o bom relacionamento que havia entre os colaboradores do instituto mas que certas brincadeiras, procedimentos e atitudes deveriam ser avaliadas muito bem antes de serem colocadas em prática. E mais, que estas atitudes inconseqüentes contavam pontos desfavoráveis se o intuito do colaborador fosse obter ascensão profissional ...

O garoto saiu literalmente arrasado do encontro e por alguns dias portou-se abatido e sem muitos “arroubos” em seu cotidiano. Porém, logo se esqueceu do ocorrido e voltou à sua velha forma de contestação, palavras chulas, extroversão total ...

Para tristeza de alguns e alegria de outros, já quando ocupava cargo contratado, se não me engano como operador pleno, o jovem futuro odontologista foi aprovado em testes realizados em outra organização e deixou o instituto, não sem antes indicar-me uma sua colega de faculdade que estava em estágio mais avançado que o dele e que já tinha consultório odontológico montado. A moça de nome Nazly demonstrou sua enorme competência e atendeu todos de minha família durante um bom tempo!

Alguns anos após também deixei o instituto para aventurar-me em outras empreitadas e com isso, o que normalmente é a tônica que ocorre com a maioria das amizades contraídas nos ambientes de trabalho, houve um distanciamento com a grande maioria do pessoal com que convivi por oito anos.

Porém, o destino às vezes apresenta-nos surpresas nem sempre facilmente explicáveis e premiou-me com uma após transcorridos por volta de 30 anos dos acontecimentos acima relatados.

Ao dirigir-me para um consulta em determinada rua da cidade de São Caetano do Sul, chamou-me atenção uma placa na entrada de um edifício comercial que enumerava os ocupantes das salas do mesmo. Pude ler nitidamente o nome de um cirurgião dentista, que se não fosse homônimo seria o próprio garoto que conheci como operador nos velhos tempos da autarquia estadual!

Não me fiz de rogado, dirigi-me até a recepção do edifício e indaguei à recepcionista se o doutor estava naquele instante em atendimento. A jovem disse que o mesmo havia se ausentado durante aquela semana e que deveria retornar na próxima semana. Ofereceu-me um cartão, onde constava o número do telefone do consultório e orientou-me para que ligasse dentro de alguns dias.

Passado um tempo maior que o devido para que eu efetuasse esta ligação, encontrei entre os meus pertences o cartão que me foi cedido pela recepcionista do edifício e resolvi fazê-lo.

Fui atendido pela secretária do doutor que me informou que o mesmo estava atendendo um cliente, que eu deixasse meu nome e telefone que ele me retornaria assim que finalizasse.

Assim procedi e “esperei em vão” pelo retorno que não ocorreu. Pensei comigo mesmo que este já era um sinal de que se tratava do jovem que conheci a algum tempo, não muito dado ao cumprimento de tratados e obrigações rotineiras.

Dentro de alguns dias, retornei a ligação para o consultório e para a minha surpresa desta feita fui atendido por uma voz masculina, que aos poucos foi me soando como conhecida. Fui direto ao ponto indagando se se tratava do Doutor Sandro Souza Júnior, que havia em sua mocidade prestado serviços em uma autarquia estadual.

Notei uma ligeira hesitação do outro lado da linha antes que “a voz” me perguntasse quem estava falando. Dei minhas “coordenadas” e pela reação do receptor pude perceber de uma vez por todas que realmente se tratava do “menino extrovertido” com o qual convivi naquele antigo instituto de pesquisas.

Em meio a exclamações emocionadas e muitos palavrões, “a voz” praticamente intimou-me a comparecer em seu consultório para que fizéssemos uma reminiscência daquela época passada.

Pelo menos de minha parte, foi um encontro emocionante! À revelia de ter ficado na recepção por um bom tempo aguardando pelo atendimento, haja vista um atendimento inesperado ter aparecido no horário que havíamos marcado para nosso bate-papo, vi no semblante e no procedimento daquele doutor, uma ligeira volta de um passado já bem distante.

O garoto, agora já um senhor cinqüentão, “descasado” e pai de duas belas moças, aparentava ótima forma e, em meio a inúmeras citações pornográficas que faziam (e continuavam fazendo ...) parte de seu linguajar, a “ostentação” de que continuava um garanhão insaciável. Fizemos um remake de nosso passado, onde vários nomes foram lembrados, espezinhados e até enaltecidos!

Depois deste encontro “tête-à-tête”, prosseguimos nossos diálogos usando o meio internáutico, obviamente bem mais avançado, que foi o precursor de nosso conhecimento há longínquos tempos. E foi através deste meio que engendramos uma reunião entre ex-companheiros da autarquia, se bem que não foi coroada de pleno êxito em virtude do período que foi estipulada, coincidindo com o final do ano.

Tivemos oportunidade de nos encontrar mais uma vez, novamente em seu consultório, onde novas reminiscências foram “desenterradas” ...

De uns tempos a esta parte, creio que devido ao avanço da idade, já avô por duas vezes, sexagenário ... me tornei um “sentimental ao extremo”, mas sou um réu confesso quando declaro a alto e bom tom que todos deveriam ter no seu rol de amigos, ao menos uma figura contestadora de paradigmas, polêmica, de bem com a vida e, acima de tudo, verdadeira e sem papas na língua como este meu Amigo Dr. Sandro Souza Júnior!