DOIS MESES
Austero, semblante taciturno, autoritário, muitas vezes grosseiro no trato.
Sua opinião é a que valia. Opinião não, ordem. E à mesa, era o primeiro que se servia.
Questionar? Não se atreviam. Até eu começar.
Sendo a mais nova, era espectadora da vida familiar e suas peculiaridades.
- Por que é assim?
- Porque ele é teu pai.
- Por que ele tem de servir primeiro?
- Porque ele sustenta a família, põe comida na mesa .....
- Mas ele é nosso pai, pai faz isso .....
- Cala a boca, Simone. Você obedece e pronto.
Eu não compreendia, em tenra idade, o porquê dos especialismos. Para mim, era a função dos pais, não era nenhum favor. Não que eu me importasse com quem se servia primeiro à mesa, eu só não aceitava o motivo.
O problema está na imposição; no que é imposto e não conquistado.
Respeito não se impõe, se conquista. Amor e admiração também.
A compreensão traz o reconhecimento.
Levei algumas décadas para compreender os porquês. Época, cultura, costume, orgulho, humano. Meu pai é humano, não é perfeito. Assim como eu, minha mãe, minha família.
A idade, os netos, a vida ..... amoleceram meu pai. Lembro a primeira vez que vi meu pai emocionado com um filme. Pai chora? Um ciclo se rompera. Um castelo ruíra.
A idade também me fez perceber mais coisas. Mas também reconhecer. Comecei reconhecendo castelos de areia, castelos humanos. Para depois reconhecer fortalezas. A fortaleza do dia após outro; da economia; do sacrifício; de cada filho doente; de cada remédio; do melhor estudo que pudesse pagar; do amor .....
Na velhice se tornara frágil. Seu corpo fortaleza começava a ruir. Mas não o Espírito. Sempre tinha planos. Planos em médio prazo, mas sempre os tinha. O último era levar a neta caçula e temporã à praia, em janeiro.
Morreu em outubro.
Dois meses. Exatos dois meses que nosso amado pai nos deixou.
A UTI, os tubos, ressuscitado três vezes, coitado. Os olhos entreabertos, opacos. A vida mantida por uma máquina.
Um monitor digital mostrava números. Pressão, batimento cardíaco. Mostrava 90, 92, subiu para 120, 121 ..... passados alguns minutos, diminuíram, até sumir da tela. É como se só nos esperasse.
Dois meses. E ainda me sinto traída, enganada. Mentiram para mim.
É da Natureza, enterrar nossos pais. Não o contrário.
Crescemos sabendo que um dia nossos pais morrerão, mas a gente só acredita quando acontece. É como se algo dentro do peito se quebrasse. Pude sentir e escutar o "clec".
Depois, só a ausência. Nos dias, no Natal, na minha vida.
A ausência física é pungente. Não basta a presença etérea da lembrança.
Mas as tragédias devem ser enfrentadas dia a dia, assim como nossos pais o fizeram. Se eles souberam sobreviver, eu também saberei. Tive bons exemplos.
Fique em paz, pai.
Nós estamos bem.
Imagem: blog.paulinas.org.br