O Segundo Incidente

A Érico Veríssimo e ao primeiro anelídeo que lhe ultrapassou a distinta carne.

Antares, 1992.

De repente os muros, esses muros. Da noite para o dia eles brotaram assim retos, curvos, quebrados, descendo, subindo, dividindo as ruas ao meio conforme o traçado, separando amigos, tapando vistas, escurecendo, abafando. Até hoje não sabemos se eles foram construídos aí mesmo nos lugares ou trazidos de longe já prontos e fincados aí. Talvez quem os tenha trazidos sejam aqueles que desenham nossa ínfima vida. Os muros, quem há de saber, decidem nosso futuro, vão de encontro a uma separação. Culminante no fim. Do mundo finito.

Jazia eu naquele féretro desanuviado a devanear sobre os aspectos fisiológicos dos anelídeos que primeiro desferiram-me a putrefata carne e da prestimosa funcionalidade dos intentes muros mundo afora, quando, como de relance, sobreveio-me uma lastimosa lasca de uma pitomba mal posta. Meus companheiros de santa terra jaziam em seus plácidos sorrisos maquiavélicos fizeram-me recordar os anais antarenses de rebelião pós-getulista. Reuni as forças que me resguardava desde o fatídico e retirei-me do sono plasmático.

O sol impetuoso colocava-se como um antimônio aos meus oblíquos olhos já decompostos. O grupo de transeuntes infensos erguia um muro a mando dos infestos parlamentares da capciosa cidadela estelar. Fiz-me de vivo há muito tempo e fui-lhes deliciar com valiosa gama da falácia. Reprimi-lhes por alguns instantes e lhes adverti que derrubassem o Cesário muro, para que o Rubicão não se desagregasse do putrefato império romano.

O grupo pôs-se a desatar a sesta e subir a alta ladeira até o palacete dos Campolargo, que já havia se transformado em palacete governamental da mais alta estirpe. O muro incestuoso acometia à paisagem um tom de segregação e simultaneamente de libertinagem para com a memória dos infindos ilustres repousados naquele que dantes fora o principado antarense.

Respondendo a tal indignação defunta eis que me sobrevém um crânio não menos desalinhado pertencente a uma ilustríssima dama. Dona Quita, rainha dos politiqueiros, remexia os terrosos dentes querendo falar-me palavra de apoio. Apóio-me na contundente face de uma senhora digna juntamente com sussurros idealistas. Pelo que me parece, praguejava contra os transeuntes. Cuido que ia continuar seu discurso mortuário, mas retraiu-se.

Para não descumprir a primazia herdada de seus antepassados, o povo anatarense ajuntou-se ao redor do portão do cemitério. Reconheci de antemão o bisneto do Dr. Cícero Branco pela curvilínea face. “Há de se fazer justiça! Nosso bom Deus não os deixará dominar-nos! Voltem para a chama eterna!” a discordante frase quebrantava a jugular da antípoda Vacariano que pelos seus recatados modos denunciavam sua emblemática posição clerical.

Aquietando-se os urubus nas copas das empoeiradas árvores, ative-me a expor-lhes a questão. O renomado prefeito Campolargo indispôs-me por palavras bonitas à multidão faminta. “Para um defunto a verossimilhança não condiz com seu putrefato estado.” Dizia arregaçando a aguda voz de orador exímio. A caveira de Quita arrotava difamações e infâmias, tamanha era sua revoltosa fronde malcheirosa.

“O muro, eu já de posse da palavra, oculta o antiquado cemitério das vistas lânguidas da clarividente população antarense. A segregação social, dantes assistida por Barcelona juntamente com o professor Terra, concretizou-se com esse ato de total despautério com a memória dos féretros sucumbidos. Retomo ao processo revolucionário do passado como maneira de resguardar os pobres mortos de uma memória digna, não oculta por paredes levantadas a mando dos desenxabidos. Concluindo, caros, iremos empestear o saudoso ar de Antares até nossa reivindicação ser levada em consideração. Que derrubem os muros!” Palmas ouviram-se na parte das raparigas e dos transeuntes já guarnecidos de bebidas alcoólicas.

O prefeito, a modo de não passar-se de mais um politiqueiro teórico, resolveu recorrer à prática do discurso. Reuniu seu extenso vocabulário de dicionário e expôs-me a sua falácia recheada de contradições, à qual dispenso essas poucas palavras: “Meu povo, vocês decidirão o final desse distinto muro. Querem que o sepultemos? Ou que sepultemos à força os defuntos?” O povo aquietou-se por um momento. O cheiro de podridão agitava o olfato dos sensíveis e os faziam debulhar em espirros incessantes.

Uma moçoila bem aparentada reuniu forças e discursou: “Quando era uma criança privaram-me do direito primeiro do ser humano. A liberdade. O muro só a faz esvair-se dos liberatórios populares e legitimar o individualismo egrégio. Ponho-me a refletir; quem o inventou? Para que o usamos? Com ele nos vemos presos ao domínio ideológico consensual de nos fazer marionetes da violência e do medo da descoberta. Um gaúcho dado às palavras descreveu o primeiro incidente e veio a descansar sem a retomada da liberdade. Povo de Antares, abaixo o muro! Abaixo!” Palmas e vivas calorosas estontearam o prefeito perdido.

Pus-me a agradecê-la por tamanha coerência com que utilizou assertivas palavras. O povo tomado por um frenesi derrubou o muro. Os urubus migraram para uma região de maiores desgraças. E o prefeito debulhou-se em conversa com a caveira de Quita, que lhe dava dicas de uma boa administração. A velha Appassionata ouvia-se... A liberdade reinou em Antares. Por enquanto...

Nota: Início de J. J. Veiga.

Marco Aurélio Alves e Silva
Enviado por Marco Aurélio Alves e Silva em 14/12/2009
Código do texto: T1978440
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