Liberdade, liberdade abre as asas sobre nós
Dia da Proclamação da República, ainda que , provavelmente, nem se saiba quais “as forças ocultas”, imitando Janio Quadros, que permearam esse ato, naqueles tempos de final de século. Dia de lembrar do hino que, nas escolas, na metade do século seguinte, entoávamos, com seriedade, mas mecanicamente, na chamada ‘hora cívica”. Quando pondero sobre sua letra e música, o conceito de liberdade é o que, numa associação primária de idéias, me salta à mente. E o motivo? Uma peça de teatro inesquecível.
Lembro daquela tarde no Teatro da OSPA. Platéia de pessoas comuns que gostam de teatro, como a que encontramos antes de uma peça acontecer, em atitudes e conversas que só acabam quando a cortina abre. Estávamos em pleno Governo Militar, com tudo que este impôs às artes.
Abre-se o pano e as luzes da platéia continuam acesas. No ar, as primeiras notas do Hino da Proclamação da República, de Leopoldo Miguez e Osório Duque Estrada. Ficamos , então, no escuro. E uma voz canta : ”Seja o nosso país triunfante,/Livre terra de livres irmãos...” A esses versos do hino segue-se um coro: “Liberdade, liberdade,/Abre as asas sobre nós,/Nas lutas, na tempestade,/Dá que ouçamos tua voz...”
O silêncio das pessoas ali sentadas era total. Quieto de doer. Estava já arrepiada de beleza pela coragem desse começo, com um hino que decorara na escola, havia quase duas décadas. Aquelas vozes, lá do fundo da escuridão, pela primeira vez, fizeram estalar, em meu cérebro, o significado daquela letra decorada.
Então, eis que um foco de luz cai sobre um ator vestido de preto. Era Paulo Autran—ah, saudade!—que, iluminado em névoa, iniciava: ” Sou apenas um homem de teatro. Sempre fui e sempre serei um homem de teatro” Para, depois, continuar:” Nós achamos que é preciso cantar. Agora, mais que nunca, é preciso cantar.” E, em coro, da boca de cena , despejavam, docemente, sobre nós trechos da “Marcha da Quarta-Feira de Cinzas”. O grande ator recebe, novamente, o foco de luz e declama versos finais daquela marcha, enquanto vai escurecendo tudo ao redor:” Canto apenas quando dança, nos olhos dos que me ouvem, a esperança.”
O teatro tornava-se, cada vez mais, um local sagrado que me colocava em constante estado de reflexão, pois, até a peça iniciar, preocupava-me com a filha que nascera e com a outra já na barriga, com o marido, casa e trabalho—fraldas para lavar, roupinhas que não secavam, a história do come-não-come da filhinha, aulas para preparar ( meus alunos de literatura medieval francesa, na faculdade, e as crianças do 3ºano do Fundamental) e coisas de rotina. Sabia o básico do Golpe, mas só o basiquinho, mesmo.
Ali, sentada, num domingo à tarde, teci ligações e significados inerentes à liberdade. E ia tudo num crescendo: o silêncio cada vez mais profundo da platéia que, nos momentos culminantes, arrebentava em aplauso, e eu, que admirava aqueles atores e o texto pela coragem de enfrentar o pior para pintar a situação, ao mesmo tempo que driblavam a censura, com palavras de grandes autores, todos já falecidos, como Oscar Wilde, Federico Garcia Lorca, Abraão Lincoln, J.F. Kennedy, B. Brecht, ia ficando pequena e envergonhada de mim mesma. Como pudera viver tão alienada, se um amigo de adolescência, companheiro de reuniões dançantes do clube, desaparecera?
Desaparecera e pronto. Meus sogros diziam que isso acontecera porque era um comunista e que havia sido muito bom que houvesse desaparecido. Que horror, exclamava para dentro de mim!
Lágrimas jorraram, porém quietinhas pela vergonha de chorar em público, no momento em que Autran reviveu trechos de poemas do “Romanceiro da Inconfidência”, de Cecília Meirelles:
“Liberdade, ainda que tarde/ ouve-se em redor da mesa./E a bandeira já está viva/ e sobe na noite imensa./E os seus tristes inventores/ Já são réus—pois se atreveram/ a falar em Liberdade./ Liberdade, essa palavra/ que o sonho humano alimenta/ que não há ninguém que explique/ e ninguém que não entenda”.
As palmas cortaram o silêncio como estertores de liberdade. E ficavam ensurdecedoras. Depois, as palavras seguem cravando sinais e, ao mesmo tempo, contagiando corações. Lembro de pensar que, logo, policiais do DOPS irromperiam ao palco e dariam voz de prisão aos atores, autores, músicos e, quem sabe, carregariam, até, uma amostragem da platéia, só para impor respeito!
Quase ao final da peça, Autran lê trechos da Declaração dos Direitos Humanos ( ONU, 1948)[1]:
“Todos os seres humanos nascem iguais e livres em dignidade e direitos, sem distinção de raça, sexo, cor, idioma, religião, opinião política ou de qualquer outra índole. Todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança de sua pessoa.”
Entre lágrimas e medo de uma repressão, levantamos e batemos palmas até arderem as mãos. Ao final, com palavras de despedida de Carl Sandburg, escritor dos Estados Unidos, em sua biografia de A. Lincoln, o Ator falou: ” O sol brilhará sobre todos que sofrem por esta causa e, mais gloriosamente, sobre a campa dos heróis. Assim será nossa alvorada. Boa noite.”[2]
Ficou tudo escuro, enquanto se ouvia trechos da marcha inicial. Quando a peça terminou, na verdade, acredito que permaneceria, por anos e anos, nas emoções da maioria daquela platéia, o impacto de Autran citando[3] “Hamlet” ( O resto é silêncio), Jesus Cristo ( Meu Pai, meu pai, por que me abandonaste?) , Goethe (Mais luz!) e "Prometeu" (RESISTO!). Naquele instante, parou tudo, como em um congelamento rápido. Quietos, completamente sentados e totalmente aturdidos pelas verdades que haviam servido de bandeira para eventos passados...
Subitamente, levantaram-se todos e berravam :”BRAVO! BRAVO! BRAVO!” E os aplausos espocavam da platéia como foguetes para demonstrar concordância com as idéias e sentimentos libertados ali e, especialmente, para agradecer por reflexões e pela (re) descoberta dos sentidos da palavra LIBERDADE.
Poucos anos antes de partir, quando inquirido sobre qual havia sido sua peça favorita, Paulo Autran respondeu que fora “Liberdade, liberdade” pelo grito de desafio e coragem que lançara. Aplaudo ainda Paulo Autran e seus colegas de cena, bem como os autores da peça que me auxiliaram a ser mais brasileira e mais consciente das coisas que por aqui acontecem.
Se alguém quiser ler “Liberdade, liberdade”, de Rangel e Millôr, o livro está disponível até em supermercados. Pessoalmente, já a li dezenas de vezes e a sugeri a muitos alunos e amigos. Logicamente, a experiência de viver com os atores esse texto acrescenta à palavra escrita dimensão maior. E, se juntarmos a tudo o contexto de medo calado do momento, no qual era mais fácil falar de flores , vocês poderão sentir o que senti como membro de uma platéia que poderia ver o espetáculo ser abatido por mãos de ferro.