Emília
Não lembro como cheguei a entrar em contato com a família da Emília, mas posso afirmar que no pouco tempo de aproximação, vivi momentos maravilhosos. Lembro que a mãe era médica, seis filhos, a Emília era a mais velha, com doze anos de idade. Do pai não lembro muito, poucas vezes o vi quando estive lá. Havia duas jovens que moravam com a família e que tinham a responsabilidade de cuidar da casa e das crianças.
Família alegre, unida e feliz. Crianças educadas e estudiosas. Os menores rechonchudinhos e belos. Todos os filhos pareciam saudáveis, nada poderia causar mais impacto do que uma notícia que chegou para abalar aquele paraíso. Num exame de rotina foi constatado que Emília estava com Leucemia. Isso há vinte e cinco anos atrás era uma sentença de morte. Começava uma corrida contra o tempo. Internamentos, quimioterapia, dores, vômitos...
Um dia Emília acordou alegre, disposta, radiante. Tinha tido um sonho, e nele, viu três seres que se aproximaram dela. O do meio, acariciando seus cabelos disse-lhe com voz amorosa:
-Emília, é tempo de voltares pra casa.
Dizendo isso, desligou todos os aparelhos, lhe deu um sorriso e desapareceu. Ela pegou no sono instantaneamente, e no dia seguinte, foi logo chamando todo mundo para contar a sua experiência. As enfermeiras preocupadas chamaram o médico de plantão, mas nada acalmava a menina. Emília virando-se para seus pais disse:
- Mãe, pai, vocês me amam? Tire-me daqui.
Seus pais entenderam que era hora de agir. Tiveram que assinar um termo, e voltaram para casa, crentes que a filha tinha sido alcançada, que Deus tinha olhado para eles. Emília parecia outra, estava mais corada, renovada.
Uma semana após, deitada no sofá, acompanhava a brincadeiras dos pequeninos que sentados no tapete montavam e desmontavam a velha e amada tartaruga colorida. A Nandinha, uma das moças olhando para Emília que de olhos fechados, um leve sorriso no rosto, parecia cochilar. Não havia compreendido que Emília havia feito a Grande e inevitável Viagem. Choro, e desespero de rasgar o coração. Após o enterro, toda família muda de cidade tentando quem sabe aliviar a dor.
Resolveram fazer uma festa. Compraram uns presentes, cada pequenino se esbaldou no bolo de chocolate que a Nandinha sabia fazer tão bem. Ah, que saudade daquele bolo! Não provei outro igual. Quando as crianças estavam cansadas, já não podendo ficar de pé, foram levadas ao banho e depois cada uma foi colocada na sua cama. O mais novo estava inquieto, e insistia em pegar um papel de presente. Só acalmou quando lhe deram o mais colorido.
Após uns quinze minutos, todos haviam pegado no sono. As moças saíram, viram o casal sentado na varanda, parecendo em paz. Parecia que alegria estava de volta. Chega de lágrimas, de tristeza, pensou Nandinha, uma das empregadas.
Breve todos naquela casa estariam aos prantos. A mãe subiu para beijar seus pimpolhos, um a um foi acariciado, coberto. Do mais velho ao mais novo. Quando chegou ao bercinho da caçula, triste quadro a esperava. Seu bebê estava roxo, frio, sem vida. Gritando, desceu desesperada e com a ajuda do esposo foram ao primeiro hospital. Tarde demais, sua bonequinha se fora.
Causa da morte: o bebê morreu asfixiado. Ele colocara o papel na boca, e os pedacinhos foram se acumulando na garganta. Novas perdas, novas lágrimas. Porém sabiam que tinham apenas duas opções: recomeçar ou passar a vida chorando. Juntaram os cacos usando o lema de Emília: Recomeçar é preciso.
É que Emília quando questionada a respeito de sua enfermidade, tinha sempre uma resposta, madura e profunda para quem tinha tão pouca idade. Essas respostas deixavam os adultos de queixo caído. Uma delas que ouvir foi essa:
- “Não tenho raiva de Deus. Ele sabe o melhor para todos os seus filhos. Os médicos dizem que é uma batalha, mas vou lutar até o fim. Eu sei que tudo na vida é feito com luta, então vou vivendo um dia de cada vez, porque esse é o lema que escolhi pra minha vida: Recomeçar é preciso.
E com um belo sorriso, acrescentou: Sempre.
Sem ter o que dizer, olhei para seus pais, neles vi a expressão de puro amor. É que Emília surpreendia. Tudo nela era razão para reflexão. Foi aí que me dei conta que Deus tinha nos emprestado Emília. Ela não era desse mundo. Depois como se tivesse asas saiu correndo. Ergui meu olhar para aquele vulto de cabelos longos que voltava a ser criança outra vez.