Fátima, minha irmã do coração

     Fátima partiu num dia triste de inverno, deixando seus amigos pobres de seu aconchego, de seu jeito especial de olhar a vida com esperança.
     Não nascemos de mesmo pai biológico, mas Nosso Pai Celestial nos deu a graça de sermos irmãs de coração.
    Desde pequeninas tínhamos afinidades comuns.  Éramos companheiras na alegria e na tristeza.
    Quando crianças colorimos nosso mundo
com  simplicidade e pureza. As bonecas eram as nossas filhas. Eram o objeto de consumo de nossa meninice. A elas devotavámos "nosso  amor" como devotavam nossas mães a nós. Construímos "nosso lar infantil" com base nos ensinamentos que nos foram dados por nossos pais. E nós começamos a distribuir felicidade para aqueles que conosco conviviam.
     Meninas alegres e bonitas já caminhavámos para a adolescência com a inquietação própria da idade. Éramos tão felizes que no contexto de nossa juventude não entrava a palavra rebeldia. Não tínhamos por que nos rebelar.
     Nossas famílias unidas por amizade fraterna nos proporcionavam as delícias de um mundo moderno, porém controlado. Mamãe a adorava e a chamava carinhosamente de Fátima Régia apesar de não ser esse o seu nome de batismo. Era apenas Fátima. Fátima que a todos encantava com seu sorriso lindo e claro.
 Sou mais velha que Fátima e ela foi a irmã que não tive. Sempre aceitei seus conselhos, embora ela mais jovem que eu.
     Lembro-me muito quando chegava apressada lá em casa, e mamãe lhe perguntava a razão daquela correria e ela simplesmete dizia: -Tia Ida, estou resolvendo meus casos. Que casos, mana? Não seriam casos sérios porque seu semblante maroto não deixava transparecer  nada de grave. Era o seu jeito alegre de ser. Era a menina grande que não crescera.
     Um dia aquela menina-flor teve sua primeira grande tristeza: a morte prematura de seu pai. Foi o nosso primeiro momento de dor; seu pai também era um pouco meu pai, pois me batizara. Choramos juntas a nossa primeira grande perda.
     Nesse momento, a menina graciosa de lindo sorriso agigantou-se diante da dor e se tornou responsável, levantou a cabeça e resolveu um importante caso na sua vida: começou a trabalhar para ajudar no sustento da casa. Deus colocou em prova sua força e ela venceu.
 Fátima não complicava as coisas, sabia viver e sempre acalentava o seu coração com a esperança e a fé. Assim, aos poucos, ela retornava a sorrir e a enfrentar a "nova vida."
     Sofríamos de doença crônica respiratória. E nós a aceitavámos numa boa. Fazíamos dela até nosso charme, pois nos tratávamos de sadia; era lá meio na gozação, mas o apelido pegou. Um detalhe importante: não nos separávamos de nossa bomba de aerosol broncodilatadora. Ela era a nossa grande companheira quando nos faltava o ar. Se não estava por perto, sentíamo-nos como criança que esquece a chupeta em casa. Era um problema psicológico que não conseguiríamos administrar nem como adultas.
     Muitas estórias aconteceram em nossas vidas que dariam para escrever um livro. Lembrei-me agora do James Dean, o galã da vez na nossa época. Estava passando  o filme que o consagrou como ídolo da juventude; só que ... não tínhamos dezoito anos, mas pensávamos ter esperteza. Sempre fui miúda, tinha aparência de menina na adolescência, mas para que existia o sapato alto? Você me emprestou um sapato altíssimo de cor branca e me maquiou bastante, principalmente os olhos. Para completar usei argolas enormes douradas. Parecia que ia para um baile e não para um cinema. Nada adiantou: pediram minha identidade. Você não tinha alcançado sucesso em resolver o meu caso. Acho até que seria premiada em assistir ao filme, porém fora repreendida pelo bilheteiro por levar  menor àquela sala de projeção. Que ironia, heim? A "mais nova" sendo responsável pela mais velha. Mas não ficamos tristes. A Praça Sãens  Pena era grande  com vários cinemas frequentados pela garotada; nosso lugar estava lá reservado.
 Lance incrível foi a troca de nomes. Tínhamos a mania (era moda na época) de trocarmos nossos nomes para os rapazes que conhecíamos. Os nomes floresciam em nossas cabeças do nada. Certa vez, usava em meu braço uma pulseira sua em que estava gravado o seu nome, e saímos para uma festa; evidentemente  não nos identificamos para os rapazes. Já eram 20h. e tínhamos de voltar para casa. Aflita você me chamou:- Vamos embora, Vilma. Só vi os caras dizendo: - Esperem, esperem que história é essa? Uma disse que se chama Vânia, a outra Amanda. A Amanda chama  Vânia de Vilma e Vilma tem uma pulseira com nome de Fátima - Que enrolação é essa garotas?
     Os rapazes não tinham alcance para decifrar aquele enigma; só mesmo o nosso grupo de jovens que estava acostumado com a tal brincadeira.
     Sempre fui mais frágil que você nas adversidades da vida. E foram reservadas para mim inúmeras perdas, mas contei com sua força e sua coragem para me fazer renascer das cinzas. Tinha sempre a sua proteção e carinho, nunca me deixando só. 
 A minha admiração por você era grande porque sentia que se preocupava comigo como se sua filha fosse. Um sentimento tão nobre , tão puro que só as mães sabem ter para com seus filhos. Tudo você conhecia da minha vida e, embora mais nova, sabia aconselhar-me.
     Hoje, irmã, transfigurou-se você em saudade. Não tenho mais seus conselhos, não tenho mais seus casos para ouvir, somente tristeza por não tê-la por perto.
     É pesaroso saber que vou continuar caminhando sem aquela figura amorosa a proteger-me. Não poderei ouvir mais sua voz, ver seu sorriso lindo de pessoa que está de bem com a vida. Tenho vontade de gritar: - Não vá embora, Fátima. É cedo, conte-me mais casos.  Ainda não são 20h. É apenas uma tarde de inverno!
     
    
Vilma Tavares
Enviado por Vilma Tavares em 23/08/2009
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