O réquiem de Mozart
Em um dia em que Mozart estava mergulhado em profundo devaneio, escuta uma carruagem parar em frente a sua porta. Anunciam-lhe um desconhecido que pede para falar com ele; fazem-no entrar, é um homem de meia idade, bem apresentado, os modos mais nobres e até algo de importante:”Eu sou enviado, senhor, por um homem muito considerado, para encontrá-lo. – Quem é este homem? Interrompeu Mozart. – Ele não quer ser identificado. – Está bem! E o que ele deseja? – Ele acaba de perder uma pessoa que lhe era muito querida e cuja memória ser-lhe-á eternamente preciosa; ele quer celebrar todos os anos sua morte com uma cerimônia religiosa, e ele pede ao senhor para compor um réquiem para este serviço.” Mozart se sentiu sensibilizado com este discurso, do tom grave com que ele era pronunciado, do ar misterioso por que parecia tomado esta aventura. Mozart prometeu fazer o Réquiem. O desconhecido continuou: “Ponha nesta obra toda a sua genialidade: o senhor trabalha para um conhecedor de música. – Melhor ainda. – Está bem! Eu voltarei dentro de quatro semanas. Quanto o senhor cobrará por este trabalho? – Cem ducados*.” O desconhecido conta o dinheiro sobre a mesa e desaparece.
Mozart fica mergulhado alguns instantes em profundas reflexões; depois, rapidamente, pega uma pluma, a tinta, o papel e apesar das censuras de sua esposa, ele começa a escrever. Esta impetuosidade de trabalho continuou por muitos dias; ele compunha dia e noite com um ardor que parecia aumentar cada vez mais; mas seu corpo já fraco não pôde resistir a este entusiasmo: uma manhã, ele desmaiou e foi obrigado a suspender seu trabalho. Dois ou três dias depois, quando sua esposa tentava distraí-lo dos pensamentos sombrios que o tomavam, ele respondeu a ela bruscamente: “Uma coisa é certa, é para mim que eu faço este réquiem, ele servirá para meu velório.” Nada pôde apagar-lhe esta idéia.
À medida que ele trabalhava, ele sentia suas forças diminuírem cada dias mais, e sua partitura avançava lentamente. As quatro semanas que ele havia pedido escorriam, ele viu, um dia, entrar em sua casa o mesmo desconhecido. “Foi impossível cumprir o que prometi. – Não se preocupe, disse o estranho. Quanto tempo você ainda precisa? – Quatro semanas. A obra inspirou-me mais interesse do que eu pensava e eu me dediquei muito mais do que havia planejado. – Neste caso, é justo que se aumentem os honorários, aqui estão mais cinqüenta ducados. – Senhor, disse Mozart sempre mais curioso, quem é o senhor afinal? – Isto não vem ao caso. Eu voltarei dentro de quatro semanas.”
Mozart chama imediatamente um de seus criados para seguir este homem misterioso, e saber quem ele era; mas o criado volta sem jeito e relata que ele não conseguira encontrar o rasto do homem.
O pobre Mozart se convence de que o desconhecido não era um homem comum, mas que ele tinha certamente relações com o outro mundo e que ele viera enviado para anunciar o seu fim próximo.
Ele não se aplicou senão com mais ardor ao seu réquiem que ele olhava como o monumento mais durável de sua genialidade. Durante este trabalho, ele caiu muitas vezes em delírios alarmantes.
Enfim, a obra foi acabada antes das quatro semanas. O desconhecido voltou no prazo combinado. Mozart não existia mais.
Sua carreira foi tão curta quanto brilhante. Ele morreu com apenas trinta e seis anos; mas nestes poucos anos, ele se fez um nome que não perecerá enquanto houver almas sensíveis.
STENDHAL – escritor francês (1783-1842)
Tradução: Marcelo Inácio Ferreira
*ducado – nome comum a moedas de ouro de vários países.