Caminhos, numa ''Carta para Maria''
Em vésperas do dia dos pais, saudosa demais do meu querido que já se foi, eu queria algo marcante pra trazer, mais que um simples texto, algo que fosse profundo e significativo, que pudesse alcançar muitos corações, suscitar lembranças, boas lembranças e, meio que, ‘’missa encomendada’’ pelo destino (se ele existe), de repente, não mais que de repente, aconteceu.
Por acaso, ontem, naquela espera terrível de banco, caso que não seria resolvido de outra forma a não ser pessoalmente, esperava e esperava e, ouvi alguém ao meu lado comentar qualquer coisa que envolvia o nome Betinho de Souza e veio-me a lembrança uma carta que recebi a algum tempo e, nela encontrei um punhado de sentimentos que, todos juntos, numa mesma pessoa, significaram o que entende-se que seja AMOR, mas amor de verdade, não esse amor de sonhos e romances. Após muito tempo guardada, resolvi compartilhar com vocês o que significou muito pra mim, quando a li em pps, enviado por um amigo que, a partir dela escrevi um outro texto, refletindo a quantas andava meus sentimentos naquele tempo. Graças a Deus tudo passa e isso tudo faz parte de lembranças, mas que serviram pra algum proveito, deixando alguma lição.
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Uma carta para Maria
Carta escrita por Hebert de Souza para sua mulher Maria e lida um ano após sua morte, pelo ator, Jonas Bloch, durante a cerimônia na CCBB:
Este texto é para Maria ler depois da minha morte que, segundo os meus cálculos, não deve demorar.
È uma declaração de amor. Não tenho pressa em morrer, assim como não tenho pressa em terminar esta carta. Vou voltar a ela quantas vezes puder e trabalhar com carinho e cuidado cada palavra. Uma carta para Maria tem que ter todos os cuidados.
Não quero tristeza quero fazer dela também um pedaço de vida de lembrança que a nossa eternidade.
Nos conhecemos em reuniões de AP ( Ação Popular), em 1970, em pleno Maoísmo. Havia um clima de sectarismo e medo nada propício para o amor.
Antes de me aventurar andei fazendo umas sondagens e os sinais eram animadores, apesar de misteriosos.
Mas tínhamos que começar o namoro de alguma forma.
Foi no ônibus na Vila das Belezas, em São Paulo.
Saímos em direção ao fim da linha como quem busca um começo.
E aí veio o primeiro beijo, sem jeito, espremido, mas gostoso, um beijo público.
A barreira da distancia estava rompida para dar começo a uma relação que já completou 26 anos!
O Maoísmo estava na China, nosso amor na São João. Era muito mais forte que qualquer ideologia. Era a vida em nós, tão sacrificada na clandestinidade sem sentido e sem futuro.
Fomos viver em um quarto e cozinha, minúsculos, nos fundos de uma casa pobre, perto da Igreja da Penha. No lugar cabia nossa cama, uma mesinha, coisas de cozinha e nada mais.
Mas como fizemos amor naquele tempo!
Foi incrível e seguramente nunca tivemos tanto prazer.
Tempos de chumbo, de medo, de susto e insegurança.
Medo de dia, amor de noite.
Assim vivemos por quase um ano.
Até que tudo começou a “cair”. Prisões, torturas, polícia por toda parte, o inferno em nossa frente. Fomos para o Chile. E ali, chamado por Garcez para elaborar textos, acabei no agrado de Allende, que os usou nos seus discursos oficiais.
Foi a primeira vez qu8e eu vi amor virar discurso político...
Depois passamos por muita coisa até voltar. Até que a anistia chegou e nos surpreendeu.
E agora, o que fazer com o Brasil?
Foi um turbilhão de emoções: o sonho virou realidade!
Era verdade o Brasil era nosso de novo. A primeira coisa foi comer tudo o que não havíamos comido no exílio: angu com galinha ao molho pardo, quiabo com carne moída, chuchu com maxixe, abóbora, cozido, feijoada. Um festival de saudades culinárias, um reencontro do Brasil pela boca.
Uma das maiores emoções da minha vida foi ver o Henrique surgindo de você. Emoção sem fim e sem limite que me fez reencontrar a infância.
Depois do exílio nossas vidas pareciam bem normais. Trabalhávamos, viajávamos nas férias, visitávamos os amigos, o Ibase funcionava, até a hemofilia parecia ter dado uma trégua. Henrique crescia, Daniel aos poucos se aproximava de mim, já como filho e amigo.
Mas como uma tragédia que veio as cegas e entra pelas nossas vidas estávamos diante do que nunca esperei. A Aids.
Em 1985, surge a notícia que atinge homossexuais, drogados e hemofílicos. O pânico foi geral. Eu é claro havia entrado nessa. Não bastava ter nascido mineiro, católico, hemofílico, maoísta e meio deficiente físico. Era necessário entrar na onda mundial, na praga do século, mortal, definitiva, sem cura, sem futuro e fatal. E foi aí que você, mais do que nunca, revelou que é capaz de superar a tragédia, sofrendo, mas enfrentando tudo e com um grande carinho e cuidado.
A Aids selou um amor mais forte e mais definitivo porque desafia tudo, o medo, a tentação de desespero, o desanimo diante do futuro. Continuar tudo apesar de tudo, o beijo, o carinho e a sensualidade.
Assumi publicamente minha condição de soropositivo e você me acompanhou. Nunca pos um “senão” ou um comentário sobre cuidados necessários. Deu a mão e seguiu junto como se fosse metade de mi, inseparável. E foi.
Desde os tempos da Cólera, da não esperança,, da morte do Henfil e Chico, passando pelas crises que beiravam a morte até o coquetel que reabriam as esperanças. Tempo curto para descrever, mas uma eternidade para viver.
Um dos maiores problemas da Aids é o sexo. Ter relações com todos os cuidados ou não ter? Todos os cuidados são suficientes ou não deve correr riscos com a pessoa amada? Passamos por todas as fazes, desde o sexo com uma ou duas camisinhas até sexo nenhum, só carinho. Preferi a segurança total ao mínimo risco.
Parei, paramos e sem dramas, com carências, mas sem dramas, como se fosse normal viver contrariando tudo que aprendemos como homem e mulher, vivendo a sensualidade da musica, da boa comida, da literatura, da invenção de pequenos prazeres e da paz.
Viver é muito mais que fazer sexo. Mas para se viver isso, é necessário que Maria também se sinta assim e seja capaz dessa metamorfose como foi.
Para se falar de uma pessoas com total liberdade é necessário que uma esteja morta e eu sei que este será o meu caso. Irei ao meu enterro sem grandes penas e principalmente sem trabalho, carregado. Não tenho curiosidade para saber quando, mas sei que não demora muito. Quero morrer em paz, na cama, sem dor, com Maria do meu lado e sem muitos amigos, porque a morte não é ocasião para se chorar, mas para celebrar um fim, uma história. Tenho muita pena das pessoas que morrem sozinhas ou mal acompanhadas, é morrer muitas vezes em uma só.
Morrer sem o outro é partir sozinho.
O olhar do outro é que te faz viver e descansar em paz.
O ideal é que pudesse morrer na minha cama e sem dor, tomando um saque gelado, um bom vinho português, ou uma cerveja gelada.
Te amo para sempre,
Betinho,
Itatiaia, Janeiro de 1997
Extraída do “Jornal da Orla” de Santos, São Paulo, ao dia 24 de Janeiro de 1999.
Temos Sociólogos bons e medíocres. Uns acabam professores, outros presidentes de Republica. (Herbert de Souza – sociólogo).
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FELIZ DIAS DOS PAIS...
FELICIDADES A TODOS ELES EM TODOS OS DIAS !
FÉ E FORÇA ENQUANTO RESTAR UM SOPRO DE VIDA !
SAUDADES DO MEU PAI...SAUDADE QUE NÃO ACABA MAIS...
PARABÉNS BETINHO, ONDE VOCE ESTIVER...VOCE QUE FOI PAI DE TANTOS !