Minha mãe

Ela ouvia Ray Charles e sonhava com a vida que um dia pensou em ter. Ela ainda se embala ao som dos Beatles – trilha sonora de sua vida - como se hoje fosse ontem, qual na canção em que todos os seus problemas ainda estavam longe e sua história tornava-se um grande baile de sábado de aleluia.

“Yesterday, all my troubles seemed so far away”... *

O que ela foi percebendo lentamente é que os seus sonhos de mocidade, embora não tivessem enve-lhecido, foram se transformando e se adaptando no seu dia-a-dia de mulher, esposa e mãe.

Muito ouvi sobre seu biquini de bolinha amarelinho e a Jovem Guarda, tudo deixado para trás para se dedicar aos filhos que, de forma exclusiva, a exigiam todinha para eles.

E assim ela ia seguindo seu rumo: ensinando o beabá às crianças, educando, ficando brava e fula da vida quando aprontávamos – e era sempre –, repreendendo-nos e amando a toda hora, minutos, incontáveis segundos, sem nem sequer esboçar sinais de cansaço pelo tanto que fazia e ainda faz.

Aprendi, com a sua lição de vida, que sempre há um jeito para tudo, que quem fica parado é poste e que arregaçar as mangas é uma virtude necessária a estes tempos modernos, pois somos nós que determinamos o nosso futuro e a vida é impiedosa a quem desperdiça uma oportunidade.

Mas, o que mais admiro no seu jeito simples de ser é a sua visão empreendedora de mulher de negócios, em que é inexistente o verbo fracassar e a vitória é objetivo final em qualquer situação que se apresente.

Ela seria uma grande executiva se tivesse nascido em outra época ou, quem sabe, em um outro local. Mas, não! Ela optou por estar aqui e viver de forma intensa todos os obstáculos com os quais a vida a presenteou; sejam eles bons ou maus, não importa.

Com ela aprendi tudo que a vida quis me tirar e não conseguiu.

Aprendi a ser duro e exigente para comigo mesmo e não desistir nunca.

Aprendi a amar o amor de filho para mãe... E essa foi a lição mais bonita de todas!! Pois quis o destino que eu não nascesse de seu ventre, nem tampouco que ela me sentisse dentro de si durante os nove meses de gestação – fator preponderante que faz brotar em toda mulher que, ansiosa, aguarda o nascimento do seu rebento, o amor materno para aquele que vai chegar.

Nem isso nos foi permitido e nem fez tanta diferença assim, pois vim dos braços de sua irmã, mulher também importante em minha vida, que determinou minha forma de pensar e encarar o mundo. Tudo foi necessário e está escrito nas tábuas da Lei.

Juntos, aprendemos a tolerar nossos defeitos, tornamo-nos confidentes, ficamos até parecidos fisicamente e não há quem diga ou duvide de nossa relação de mãe e filho.

Nestes meus quarenta anos vividos, já a vi enfrentando todas as situações: rindo, chorando, brava, feliz, alegre, triste, com raiva, bondosa, repreensiva; enfim, com todas as qualidades inerentes a todo ser humano. Mas o que se destaca é a sua capacidade de renovação, de renascer. Minha mãe é uma fênix, ave mitológica que renasce das próprias cinzas. Eu já a vi renascer diversas vezes.

Fui o seu primeiro filho e, juntos, aprendemos diariamente as lições cotidianas. Nossa ligação foi há muitas eras iniciada e nosso encontro, com certeza, não acaba aqui.

Ah!... quantas alegrias em família!

Ah!... quanta saudade!

Passamos por poucas e boas e ainda temos muito a viver. E bem sei que ela daria tudo para que muita coisa fosse diferente. Ela sabe muito bem do que estou falando...

Pois ela finaliza os meus pensamentos e sabe, de antemão, antes de eu contar. Para ela, eu dou todo o meu amor e não peço nada em troca – só um leite com café na cama, daquele jeitinho que só ela sabe fazer...

No céu, com diamantes**, só para finalizar com os Beatles, iremos continuar nossa jornada espiritual. Junto a quem já se foi e que espera por nós.

Pelo ontem

Pelo amanhã

Pelo futuro

Por tudo o que sou

E que não seria nem a sombra

Se não fosse você

“I can´t stop loving you” ***

Para sempre seu filho

Por toda a eternidade

MM

* “Yesterday”, dos Beatles

** “Lucy in the sky with diamonds”,

dos Beatles

*** “I can´t stop loving you”, de Ray Charles

Homenagem publicada no livro Viver: um jogo perigoso, de Márcio Martelli, Editora In House (2009)