Caminhando para trás.

Aos onze anos, algo de diferente me chamou a atenção na televisão de 16 polegadas. Já havia assistido a alguns shows de rock escondido, como turnês aventureiras do Ramones e performances orquestrais do Iron Maiden. Luzes perfurando a obscuridade de um palco com pessoas vestidas de preto não me era mais novidade. Mas quando visualizei aquele senhor desafiando a si mesmo com vertiginosas acrobacias, meus olhos brilharam num misto de euforia e assombro.

Os passos de dança, ou melhor, os truques de magia corporal que Michael Jackson com desenvoltura executava em seu espetáculo transcendiam o que minha percepção poderia compreender. Eu não entendia o que ele estava fazendo! Misteriosos movimentos que a todo momento confrontavam o ritmo natural das cousas, diria Pessoa. No reflexo dos meus olhos de infância, brilhou o primeiro exemplo de revolução.

Caminhar para trás foi a representação mais poderosa que já assisti de um duelo contra forças que empurram milhões de homens e mulheres para a mesma direção. Quando pequeno eu sequer cogitava esse significado que descobri enquanto meditava sobre o astro, mas ainda assim espantava-me. Me espantei desde o primeiro show, e a partir dele comecei a timidamente tentar imitar tais enigmáticos passos rítmicos, sem sucesso. Mas como nos fracassos sempre deve haver um culpado, escolhi o carpete áspero do dormitório como obstáculo para o deslize dos pés.

O chão da sala de madeira lisa e encerada parecia mais adequado. Calcei meias brancas para diminuir o atrito (para infelicidade da minha mãe), e pela primeira vez andei para trás. Desengonçado e bobamente risonho, chamei todas as pessoas que pude para me verem mirabolar o "moonwalk". Michael foi o primeiro a me inspirar a ter um sonho; um objetivo advindo do coração, do assombro espiritual, da ternura presente em todo mistério.

Mas meu novo ídolo desfigurou-se. Metido em confusões que eu nem entendia e alterando sua própria fisionomia, o mago mergulhou num precipício até morrer 40% antes da expectativa de vida norte-americana. Ontem, abri alguns sorrisos amarelos na faculdade quando colegas comentavam sobre o recém falecimento, em clima de humor. Mas no meu íntimo, a música destoou; desafinou amargamente.

Porque sinto que quem se perdeu, desfigurou, adoeceu e morreu não foi apenas Michael. Foi também a nossa referência de arte, alma e vida. Ambos mudaram de rosto até parecer um esqueleto, corrompendo o que antes não era perfeito mas continha beleza. Enfiaram-se por vias problemáticas de polêmica e transgressão, num amontoado de ambições vazias que não brilham nem à luz do sol. A morte de Michael não muda o mundo; apenas simboliza a decadência e óbito da pura essência humana. Assim como representava nos palcos com seus gestos tão origâmicos, sua trajetória como homem parece ter resumido a "timeline" da sociedade moderna - ou pós-moderna, nem sei mais em que época estamos.

Por fim, simboliza também o meu envelhecimento. Acabo de perder meu primeiro ídolo.

Que a luz o tenha, Seu Michael Jackson; e lhe conceda finalmente a alegria e inspiração que outrora tu me outorgaste. E, se for para o nosso mundo caminhar para trás, que seja como tu o fizeste nos melhores momentos: com brilhantismo e genialidade.

Who's bad?