Arigatô, a cabocla.
Minha surpresa foi tamanha que quanto mais eu ouvia, mas minha boca ficava escancarada. Quem? Não acredito!
Mas infelizmente, era verdade, minha cabocla havia partido. Tudo aconteceu tão de repente, que nem mesmo quando me ponho a escrever essa pequena homenagem parece-me que estou contando uma história que não foi real.
Uma queda, um corte na mão, pronto-atendimento, limpeza do corte e quatro pontos depois, Zefa vai direto pra casa, reconhecendo que poderia ter sido pior.
Segue todas as orientações médicas: repouso, medicamento, tiragem dos pontos no dia marcado, a certeza de que essa era apenas mais uma daquelas fases...
Estava enganada. Na tiragem dos pontos o corte não fechara. Coloca a mão na tipóia, mais medicamento... Dores, muitas dores.
Fui visitá-la ainda em casa, olhei para aquela mão machucada, um pouco avermelhada. Pensei: vai ficar boa logo, logo. Que nada!
Alguns dias depois chega à notícia: Sabe quem está internada? Arigatô. Como? Do quê?
Jamais iria imaginar que seria por causa daquele corte tão pequeno.
Precisei viajar, voltei com meu filho gripado, assim que ele ficou melhor fui visitá-la. Não estava preparada pra o que vi: estava mais magra, rosto decaído, um braço inchado como se sofresse de elefantíase. Água escorria do braço enfermo.
Dei-lhe um abraço, e um beijo na cabeça. Foi a última vez que a veria com vida. Conversamos um pouco, disse-lhe palavras que precisava ouvir:
-Você vai ficar boa. Breve vai voltar pra sua casa – percebi que ela estava caladona, muito triste, pedindo a morte.
Saio dali preocupada.
A virose me derrubou, fiquei quinze dias de molho, mas sempre mandando um recadinho de que assim que pudesse iria vê-la, não tive mais oportunidade. Zefa se foi.
Tinha sessenta e cinco anos, parecia ter cinqüenta. Morena, cabelos negros, curtos e caracolados. Força pra deixar no chinelo qualquer homem, botava roçado e andava léguas a pé, sem temer a nada. Porém tinha um quê de cabloca-do-mato que quando cismava, não tinha quem a fizesse arredar o pé. Assim era Zefa. O apelido de Arigatô veio por meio de brincadeiras. Ela tinha os olhos puxados, parecia uma japonesa de pele morena, era descendente de índio.
Demoraram a descobrir a doença, os medicamentos não surtiram efeito, a hora era essa, deixaram-na a míngua, houve negligência, se fosse no Particular teria recebido um melhor atendimento, quando chega a hora ninguém escapa porque a morte só quer uma desculpa... Muitos comentários, muitos pensamentos, muitas opiniões.
Não tenho resposta para a partida tão súbita da minha amiga, porém tenho certeza de que vou me lembrar sempre do seu jeitão de lutadora, guerreira, de quem teve de lutar por cada espaço seu.
Analfabeta, porém inteligente, cheia de sabedoria que só a própria experiência pode conceder, ela era a própria voz de quem lutou desde que veio ao mundo pelo simples desejo de viver.
Na sua vida houve muitas perdas: a do marido, dos pais, parentes e amigos. Chorava de um jeito só seu, parecia um animalzinho segurando a dor, nesse gesto de sufocamento, botava pra fora através de apitos e chiados. Nunca a vi mostrar dor através das lágrimas, parecia que esse ato a faria menor do que já aparentava ser. Como estava enganada!
Pra onde ia um bando de cachorros lhe acompanhava. Um dia lhe perguntei: Zefa, por que esses cachorros não lhe largam? E eu sei? respondeu-me prontamente. Somente hoje descobri o segredo: ela comprava uma galinha viva, matava-a, e enquanto tratava a ‘penada’, arrancava com pena e tudo as asas e jogava para os cachorros. Depois repetia o gesto arrancando o pescoço, a carcaça, os pés. Ficava com o peito. Esse ela cozinhava de uma vez só – não tinha geladeira- e dividia tudo com um gato de estimação.
Zefa, você precisa comer mais fruta e verdura e diminuir o consumo de carne, pois faz mal à saúde. Ela respondia: Quem disse que gosto de comer carne? Eu como muito pouco.
Era verdade. Na frente das pessoas ela comia como um passarinho, porém quando estava sozinha tinha uma fome de leão. E traçava mesmo, com alegria e entusiasmo. Caía por uma boa tigela de feijão, farinha e carne, muita carne.
Todos da sua família morriam por causa do agravamento da diabete e da pressão alta. A maioria antes de morrer tinha seus membros mutilados. Primeiro perdia um dedo, depois parte do pé ou mão, depois a perna ou braço. Pude compreender melhor. Ela sabia que tinha pressão alta, e pensando baixar a pressão comia muita coisa doce, a glicose ficava nas alturas e ela não sabia, ou não dizia aos médicos quando questionada.
O mal foi se alastrando, e veio à tona através da queda.
Hoje, vinte e nove de maio de 2009, vi minha Arigatô deitada num ataúde. Parecia sorri. Estava livre de todo sofrimento, pois segundo testemunho quando foram tirar a carne necrosada do seu braço, a anestesia não fez efeito e tudo foi feito a cru, seus gritos abalaram o hospital, seus gemidos deixaram abatidos todos na enfermaria.
Resolvi acompanhar o cortejo até a entrada do cemitério, dali pra frente por causa da minha saúde debilitada, e do desejo de não contemplar o quadro mais dolorido da separação material - o baixar à terra um ser que antes falava, ria, cantava, tinha uma história de vida. Decidi guardar na memória a Zefa, a cabocla, a Arigatô, a que era amiga dos cachorros.
Ela com certeza descansa em paz.