O Velho Sapateiro
Quando chegou a aposentadoria, logo percebeu que não poderia viver apenas daquele salário. Tinha cinco bocas para alimentar, fora os netos que chegavam como passarinhos no ninho, de boca escancarada à espera do alimento. E se dependesse dele, nunca sairia da sua boca: vocês não deveriam ter vindo, pois não temos o que comer. Pela família daria o próprio sangue, se assim pudesse transformá-lo em pão.
Botou a cachola pra pensar. E pensa daqui, pensa dali, lembrou de que quando jovem fora ajudante numa oficina de sapato, e ali tanto se fabricava, como também eram feitos consertos diversos. Mas havia uma dificuldade: ele, o velho Prezo não colocava à mão em brochas, cola, tinta, verniz, sola, couro e demais ferramentas de trabalho há quanto tempo? Mais de cinqüenta anos é muito pra um miolo velho lembrar,pra fazer bem feito! Com ele era assim, quando se colocava a fazer algo, fazia com minúcia, desvelo. Por causa dessa maneira de exercer tarefas, por mais insignificante que fosse, quando arrumava um serviço os patrões não queriam mais largá-lo. Era pau-pra-toda-obra, mas apenas para serviço pesado, tipo: capinar, abrir buraco, desentupir regos, limpar fossa, derrubar ou podar árvore. Numa casa, trabalhou uns quinze anos exercendo a função de vigia, porém ganhava uns trocados extras fazendo outros serviços.
Costumava dizer que não era pau-de-amarrar-égua, mas sim pau-de-levar-carga, sem desonrar as calças que vestia. Com seu linguajar simples fazía-nos rir, pois tudo nele era puro contraste. Matuto da roça, mas era galego dos olhos azuis, com cabelos escorridos caindo nos olhos. Analfabeto, mas desenrolado feito pião nas mãos de um moleque. Andar de ônibus? Nem pensar. Andava três, quatro, cinco... dez quilômetros sem se abalar. Corpo de invejar freqüentadores de academia. Comida? Parecia que não sentia fome. Fazia apenas três refeições por dia: café com pão, sem nenhum mimo pra dá gosto ao ‘pãozinho desmaiado’; no almoço, feijão, farinha e um pedacinho de charque cozida no próprio feijão, ou outro tipo de carne – nesse dia não almoçava bem.
Em época de manga, sua alegria dobrava de tamanho, pois era seu prato predileto: Feijão, farinha e manga.
Mas voltando ao pau-pra-toda-obra. Vendo-se sem ter o que fazer e o dinheiro curto, resolveu voltar a consertar sapato. Comprou os apetrechos, treinou nos sapatos de casa, foi à luta. Anda daqui, anda dali, viu num bairro de gente rica, uma casa de esquina, e ali decidiu fazer seu ponto de negócio. Falou com o ‘doutor’, explicou o que queria, e recebeu consentimento para colocar seus trastes encostado ao muro da casa. Em troca ofereceu-se para consertar todos os sapatos dos ‘granfinos’.
Ali, todo dia trabalhava das sete da manhã às quatro da tarde, só almoçando quando regressava. Antes de ir, não esquecia de varrer a calçada pois ‘era feio um homem como ele, com os cabelos brancos ser chamado atenção por se portar como um imundo, e além disso, seria o mesmo que cuspir na cara da própria mãe’. Ingratidão não era com ele. Reforçou a renda da casa, ficando mais descansado, porém, como ele dizia: alegria de pobre dura pouco. O ricaço vendeu a casa pra outro doutor que não queria uma ‘ tenda imunda a enfear seu muro, e o sapateiro pegou seus trastes e foi pra outra calçada ganhar seu ‘tostão honradamente’.
Trabalha daqui, perde dali - muitos colocavam os sapatos e nunca mais voltavam para pegar e pagar pelo conserto. Ele ficou mais esperto. Só pegava o serviço se recebesse a
metade do valor à vista e o restante quando entregava o calçado restaurado parecendo novo.
Fez muitas amizades, atraindo muitos velhos que não teve a coragem de ‘colocar a mão à tora feito eu’, e ali enquanto trabalhava – pois não gostava de ‘faltar com a palavra’, ia falando do governo, do preço alto, dos assaltos e relembrando o ‘tempo de antigamente’. Quando o freguês chegava, a encomenda estava pronta e ensacada para voltar aos pés dos ‘ devidos donos’.
Anos se passaram, e ‘o mundo indo de mal a pior’. O velho sapateiro passou a ser procurado por viciados em cola. E no início apenas pediam a lata seca, depois a querer sempre mais, e por último passaram a ameaçá-lo. Quando se viu perseguido, ainda pensou em ‘ meter a faquinha na barriga desses desalmados que não deixavam ninguém trabalhar’, mas aconselhado pelos donos da casa onde ele colocava os trastes, e atendendo aos conselhos dos filhos e genros, baixou as armas e voltou pra casa.
Nunca mais foi o mesmo. Quando a saudade apertava voltava à casa dos doutores e ia à procura dos velhos companheiros, mas gradativamente foi perdendo o interesse. Depois, passou a sentar numa calçada na pista principal ‘ pra jogar conversa fora’.
Naquela calçada, virou menino, foi colocado numa cama, e meses depois, partiu para
‘ descansar das labutas’.
Esse velho sapateiro, pau-pra-toda-obra era meu avô.