A menina dos olhos do céu (que não brilham mais)

Nunca pensei que veria tamanha formosura, amabilidade e encanto em uma única criatura. Mas conheci. Ela tinha asas nos pés e olhos da cor do céu. Ela, desde novinha, gostava de brincar com as palavras. Criava e recriava seu mundo através de folhas de papel , giz de cera e de palavras.
Gosto de lembrar daquele sorriso - era como o mais forte e belo raio de sol a bailar pelo infinito do céu a me aquecer.
Lembro-me que ela estava sempre feliz, sempre desenhando ou escrevendo. Dizia constantemente que só é possível traduzir a vida através de cores e letras.
Quanta sabedoria existia em um ser tão pequeno, tão inocente, tão cheio de vida....


Um dia, não me lembro quando, aquele olhar cheio de luz, começou a se apagar. As risadas gostosas deixaram de ser ouvidas e as poucos, a garotinha dos olhos da cor do céu, a garotinha que sempre tinha algo a dizer, começou a se calar. Muitos ao seu redor começaram a perceber, e questionavam: “- O que aconteceu com o brilho da menina dos olhos do céu?”

Aquela garotinha já não sorria, nem brincava, nem escrevia. Ficava pelos cantos, com olhos fixos no nada, e a cada hora passada, seu olhar mais se entristecia. A vi, algumas vezes, escondendo uma lágrima aqui, outra ali, que teimosa insistia em cair.

Lembro-me daquela tristeza tão bem quanto me recordo daquela felicidade. Era o mesmo que presenciar um mar, cheio de vida, simplesmente secar e virar um enorme e seco deserto. O que haveria acontecido? Onde estaria o brilho que outrora brincava naquele rosto?

Os dias se passaram e levaram consigo o anjinho que nuca mais a vi. Esperei dia após dia que regressasse, mas ela nunca voltou. Numa tarde de inverno, uma senhora nós trouxe um pequeno envelope com os seguintes dizeres:


“Minha querida irmã,
Não chore por mim, fiz o que fiz, por não ter mais forças. Busquei ajuda, mas não acreditaram em mim e não posso deixar isso acontecer a você.
Eu amava a minha vida, a minha escola e meus amigos. Amava em especial, desenhar e escrever, mas até isso foi tirado de mim. Hoje, não posso mais fazer o que amo e sou obrigada a fazer o que odeio. Já não sei mais o que significa um sorriso. Estou só. Apenas eu e minhas agonias. Nunca pensei que algum dia, desejaria e ansiaria pelo fim. Mas ele não chega e não suporto mais, simplesmente não suporto... Retiraram de mim a minha paz, minha segurança, minha felicidade. Por favor, me perdoe...
Se está lendo esta carta, é porque estou em paz. Não sinta por mim, eu já estava morta (e agora estarei em eu coração)
Com amor.”


Junto a esta pequena cartinha, veio a notícia do suicídio da garotinha dos olhos do céu.

Descobriram que ela havia sido violentada pelo padrasto e que pelas lesões, foram inúmeras vezes.
Descobriram que ele a amarrava, a espancava, a machucava de todas as formas possíveis.

Ela havia contado a sua mãe, mas ela não acreditou.
Ela queria contar para alguém, mas ele a ameaçava, dizia que se não fosse com ela, faria com a sua irmã de quatro anos. Ela não podia permitir...
Ela tinha 13 anos e estava sozinha, apavorada e não possuía mais forças para suportar...

Encontraram também o seu diário, nele havia relatos de como eram os abusos. Ela dava forma, através das palavras, ao seu medo, à sua dor. Ela escrevia o seu terror quando seu padrasto chegava bêbado e a amarrava e a machucava.... Ela escrevia como gostaria de não ter que chegar em casa, como odiava a noite, como chorava e sangrava até o amanhecer... Como desejava que ela simplesmente não acordasse mais, que simplesmente morresse naquele chão frio...

......

Quantas crianças perdem suas vidas em meio a lugares frios e sem vida.
Quantas crianças encaram diariamente o pior do ser humano.
Quantas crianças são violentadas, desacreditadas e abandonadas.
Quantas crianças perdem o “ser criança” por causa de homens e mulheres, piores que animais...

Dedico este texto às milhares crianças desse mundão que já foram ou são abusadas.
Dedico este texto em especial à memória de uma garotinha de 10 anos que se matou, na cidade de Itabela (Extremo Sul da Bahia) há alguns anos atrás, porque não encontrou mais o que fazer ou alguém para lhe trazer segurança...





Tx de Freitas - BA, 06 de maio de 2009
Hari Alves
Enviado por Hari Alves em 06/05/2009
Reeditado em 07/05/2009
Código do texto: T1579890
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