Um velho e sua lareira amiga

O silêncio é rasgado pela lenha que estala. Uma nova baforada me aquece a velha pele ao que a chuva teima em castigar meu telhado. E esse cobertor já não parece ser o suficiente.

Subo as escadas – preciso lembrar de olhar esse degrau que tanto range -. Sobre a cama está o tesouro: minha colcha de retalhos.

No caminho à sala, pego um chocolate quente... Sim! Chocolate!... Recosto mais uma vez na poltrona e ligo o som.

Sob violões e vozes em dueto, aquiesço. Retalhos... Meus precioso pedaços d’algo. A sala parece maior e mais incolor enquanto meus olhos a inspeciona superficialmente.

Cansados e secos pelo frio, fecham.

Meus olhos, meu corpo, minh’alma. Pedaço d’algo.

Lembro do dia que ganhei essa colcha de minha irmã. Seus dedos bailando com a agulha, tecendo e tecendo.

Lembro de muitos sorrisos. Não só de minha irmã. Mas de forma similar, com fios lindos e negros que convidavam dedos-agulha a tecer e tecer. Se emaranhar e perder nestes.

A chuva e o fogo sempre estiveram, sempre foram. Meus dedos não dançam naqueles cabelos mais. Mas seu cheiro, sua risada e seu carinho estão, sempre estarão.

Outro estalo me desperta. E na onda da saudade, um sorriso se desenha no abrir dos olhos, Um cheiro acompanha o calor da lareira aquecendo a amizade há tanto amada.

Um velho, sua colcha e sua lareira. Seria só um pedaço. Seria só algo.

Um velho, sua colcha, lareira e uma amizade única tecida nos cabelos perfumados da musa, embalsamada por suas palavras e ornamentadas pelo som cristalino de seu riso. Torno-me mais... Melhor. Sou um pedaço d’algo. Maior e melhor. Uma lasca do diamante onírico perpetuador do mais puro elixir: amor.

E imerso nesse mar, rejuvenesço. E o mais importante: sorrio mais uma vez. A chuva e o frio se prostram sob seu véu negro resplandecente.

Véu que me protege, me aquece.

Tecido por anos de convivência e dedicação.

Tecido em meio a risos e carinhos, preocupações, dúvidas, conselhos e atritos.

Véu que me suspende, alegra e conforta.

Tecido por mim. Tecido por você.

Quando os anos lhe pesarem ou a maré da tristeza lhe solapar, use nosso véu. Minha amizade e amor a protegerão, assim como os cabelos que lhe acariciam a tez. E não duvide. Eu estarei lá, assim como sempre esteve aqui. Mesmo sem saber.