C. L. - I -
Eu nasci já em fuga. Meus pais pararam em uma aldeia que nem aparece no mapa.
Minha alma tem o peso da luz. Tem o peso da música. Tem o peso da palavra nunca dita, pronta, talvez, a ser dita. Tem o peso da lembrança. Tem o peso da saudade. Tem o peso de uma olhada. Pesa como uma ausência. E a lágrima que não se chorou. Tem o imaterial peso de uma solidão em meio dos outros.
Ela era o resultado de ter nascido duas vezes. Uma, num continente; outra, renascida, em outro. Duas vezes, de uma viagem lenta, difícil e precipitada, para finalmente chegar a sua nova língua, que descobrindo-a em cada frase, a adoptava.
Meu segredo é ter olhos verdes e que ninguém o saiba.
Na extremidade de mim estou eu. Eu, implorante, eu, a que necessita, a que pede, a que chora, a que se lamenta. Mas a que canta. A que diz palavras. Palavras ao vento? Que importa, os ventos trazem-nas de novo e eu possuo-as.
Ela queria ter a força de uma janela. Então olharia fora com olhos imóveis, quietos, pacientes, muito abertos, encaixilhados na moldura de madeira, olhos de janela. As cousas, assim, intactas, preservadas da violência do olhar, mostrar-se-iam, cada uma. Ver-se-iam, sem tomar nem colorir com o pensamento, com olhos sem mãos.
Submetida ao mundo, as cousas chegavam por vez primeira. Ela via. Fazia uma descoberta. Uma cadeira. As cousas emergiam elas próprias. Nuas.
Há um grande silêncio dentro de mim. E esse silêncio foi a fonte das minhas palavras. E do silêncio tem vindo o que é mais precioso de tudo: o próprio silêncio.
Escrever será sempre essa mistura de palavras e segredos. O silêncio é tal que nem o pensamento pensa. Sei mais silêncio que palavras.
Ela conhecia cada um dos silêncios da sua casa: o silêncio da planta e o silêncio da flor solitária, o silêncio de seu cão e o silêncio teimoso dos móveis. Escutava desde a sua janela o silêncio trepidante e ensurdecedor do mar, o silêncio da brisa, melodia que acompassa todos os silêncios.
‘Despertava entre as três e as cinco da madrugada. Erguia-se, punha uma bata bastante usada (quanto mais velha mais cómoda), ia à cozinha pelo café. Tomava uma xícara com bolachas e queijo, prendia um cigarro, dirigia-se à sala, onde se recostava no sofá, com Ulisses, seu querido cão, a seus pés. Tão denso era o silêncio naquelas horas que o crepitar de um fio de tabaco fazia que o animal retesasse as orelhas atento.’ – confessava sua secretária e amiga.
Não me falas na minha língua, não és do meu sangue, mas falamos o mesmo silêncio, Ulisses.